domingo, dezembro 29, 2013

God save the Queen


A escova desliza pela cascata preta que são seus cabelos. O batom vermelho retoca uma imperfeição inexistente nos lábios fartos. O porte de princesa não lhe diz respeito, mas poderia se passar por uma rainha facilmente. O luxo é parte de você. E o luxo jamais se mistura com o lixo.


E enquanto eu te escrevo essas palavras, não me preocupo com o quão indelicado eu sou. Não me importo com possíveis erros de gramática ou palavras com duplo sentido. Nada me preocupa pois sei que o que mais te enoja não é o que lhe digo indiretamente, mas o simples fato de que, apesar de viver em seu próprio mundo onde pessoas são súditos e sua pessoa é a maior autoridade, nada deveria manchar sua imaculada perfeição. E é claro que tocar em um papel de carta antes tocado por um simples plebeu te torna tão suja quanto eu sou.

Talvez eu esteja errado. Talvez você não leia com uma expressão de nojo e o estômago revirado. Talvez nem mesmo demonstre algum abalo em seu coração frio como gelo. Talvez nem mesmo leia até o fim. Isso me dá a liberdade de escrever como bem entender, não é? É o que eu farei, de qualquer jeito.

Diga-me, qual o propósito de agir assim? Sempre vi a pobreza de espírito como o pior dos pecados, mas nunca havia percebido como o excesso também é nocivo à saúde espiritual. Nunca havia percebido, mas também nunca havia notado teu jeito de imperatriz de Lugar Nenhum. Diga-me, imperatriz, qual seu propósito? Faz tudo como se alguém te contemplasse, pequena Narcisa que jamais amou. Sei que jamais amou, pois se amasse, não faria o que faz. Não ama nem a si mesma. Ora essa, se ao menos conseguisse admirar seu próprio reflexo sem perceber algum defeito a ser consertado, poderia perceber a beleza da imperfeição.

Apenas pare. Pare por alguns poucos minutos, e olhe ao redor. Então, diga-me mais uma vez, Vossa Majestade, como andam seus propósitos? Vale a pena satisfazer seus caprichos dignos de uma criança que cresceu cedo demais? Olhe ao redor e repare não só no que você perde de nós, súditos de uma rainha jamais coroada, mas também no que você perde de si mesma. Vossa Majestade possui alguma qualidade? Se possui, por favor, deixe-me vê-la! Pois assim, a olho nu, não posso enxergar nenhuma. Apenas o excesso de luxúria, que lhe cai melhor como pecado.

Não acredito que tudo tenha sido lido até aqui. Se foi, agradeço o tempo que me foi dedicado, e peço desculpas pelo incômodo provocado. Afinal de contas, sei que plebe e realeza não se misturam. Talvez algum dia as coisas mudem, mas não começará por mim. Aproveite a chance enquanto pode, e aproveite seus privilégios enquanto lhe são oferecidos, ainda que pela sua própria mente sedenta de poder e atenção.

Deus salve a rainha.

segunda-feira, dezembro 23, 2013

A Origem da Sereia



(com participação de M. Deméter.)


O barulho na superfície continuava com o mesmo nível de irritação que sempre ocorria naquela época. Um zunzunzum sem fim que apenas humanos eram capazes de fazer e que causava uma desordem mesmo lá no início das profundezas do mar.

Jullie sabia muito bem que não deveria se aproximar daquela raça barulhenta e porcalhona, mas o barulho era tanto que a vontade de deixar-se roçar nas pernas de um ou nos pés de outro era praticamente incontrolável. Ora, ela tinha o direito de ferir ao menos aqueles que ousavam ir fundo demais e importunar seu habitat natural. Aquela era sua casa, não deles.

Ela entendia sem problemas que eles usassem o mar como fonte de diversão durante os dias de férias. Mas ora essa, era noite de Natal! Para os humanos, isso queria dizer ficar em suas casas, com suas famílias, não? Pois então, que fizessem isso e deixassem tanto ela como os outros seres marinhos em paz!



Stella olhava toda a cena com reprovação. Não concordava com a ação dos humanos, mas não concordava com Jullie também. Os humanos eram perigosos. O melhor a fazer seria deixá-los de lado e ir mais fundo no oceano, onde eles não seriam capazes de chegar, e ficar lá até que eles fossem embora.

E era exatamente isso que ela tentava fazer, afinal, era uma estrela-do-mar e o que estrelas-do-mar podem contra os destruidores humanos da natureza? Ela poderia ser pisoteada, chutada, arremessada, ou ainda pior, poderia ficar presa em alguma daquelas coisas brancas que mais pareciam redes sem furos para peixes.

Ainda assim, como poderia ir para a segurança do calmo fundo do mar e deixar sua amiga lá? Jullie era uma água-viva e conseguia se defender, mas suas defesas também poderiam ser a causa de sua morte.

Ela ponderou durante um bom tempo. No geral, mantinha-se longe de humanos e o mais longe possível da superfície. Se permanecesse muito tempo longe da água, morreria, e sabia disso. Mas Jullie não parecia com tanto medo, ou ao menos pensava que o risco valia à pena.

Por fim, decidiu se aproximar, apenas o suficiente. Convenceria Jullie a voltar consigo para o fundo do mar, onde esperariam até que tudo se acalmasse. Mas nada se acalmou, e ela nem mesmo teve a chance de chegar perto.

O zunzunzum de antes foi incrementado pelo barulho da queda, e a primeira coisa que Stella conseguiu visualizar foi uma massa loira que acreditava se chamar cabelo. Depois vieram os braços e pernas cumpridos se debatendo de um lado para o outro e causando reviravolta no mar, impedindo o avanço da estrela.

A água-viva desapareceu de sua visão por alguns segundos, enquanto seus braços mantinham seu equilíbrio no agitar do mar, impedindo-a de se afastar muito ou virar de pernas pro ar.



Jullie sentiu as ondas antes de ver a menina loira, mas isso não impediu que alguns dedos tocassem sua membrana por um instante, fazendo a humana se debater ainda mais. Por ela, a menina continuaria onde estava agora: abaixo da superfície, tentando desesperadamente subir e respirar.
Humanos não costumavam se importar com as criaturas do mar que eles, por vezes, matavam ou tiravam de seu lar para criar em ambientes artificiais. Por que, então, criaturas marinhas deveriam se importar com humanos?



Stella, mesmo que quisesse, não poderia levá-la para a superfície. Não tinha muito que pudesse fazer além de ficar ali e assisti-la se afogar. Entretanto, seu desejo era exatamente o contrário ao da água-viva, queria impedir que a humana se perdesse eternamente entre as correntes marítimas.

Talvez fosse exatamente por isso que ela era uma estrela inofensiva enquanto sua amiga era uma ardente água-viva, Jullie tinha o instinto predatório que Stella nunca teria, instinto esse que várias vezes já salvara sua vida, mas que várias outras a metera em grandes confusões.
Independente do que sua amiga pensasse, ela não deixaria que aquela menina morresse. Afinal, a garota não tinha culpa de pertencer à raça dos barulhentos quebradores de conchas.

Resolveu, então, avisar a Jullie o que resolvera fazer. Avisaria a eles. Era uma medida extrema, mas com ou sem o apoio da amiga sabia que era a única solução, não ficaria parada observando uma humana sofrer daquele jeito. Além do mais, aquilo já havia sido feito antes, qual o problema em fazer mais uma vez?

Concentrou-se em tentar se comunicar com Jullie. Não poderia avisar com palavras como os humanos faziam, é claro, era só uma estrela-do-mar, mas poderia avisá-la através de suas emoções, com uma espécie de imagem mental.

A resposta veio inicialmente em forma de desespero e inquietação, como esperado. A água-viva pouco se importava com vida e morte dos humanos. Mas mesmo ela aos poucos, com os argumentos apresentados por Stella, foi transmitindo um sentimento de compreensão e aceitação, afinal, do pouco que as duas ouviram falar deles, sabiam que salvavam apenas os merecedores de tal dádiva.



A garota loira aos poucos ia afundando, algumas bolhas cada vez mais raras escapando por seus lábios. Após decidirem contatá-los, estrela e água-viva precisavam agir rapidamente.

Jullie se prontificou a trazê-los com toda a força de seus pensamentos e distanciou-se um pouco da menina balançado seu corpo o mais rápido que podia. Não era possível que ouvissem com toda aquela agitação que a humana proporcionava.

Eles não demoraram muito. Se a garota podia ver alguma coisa debaixo d'água, então certamente achava que já estava perdendo o juízo. Tinham idades aparentemente diferentes, mas todos possuíam uma beleza incomparável. Desde as feições humanas extremamente belas até a ponta de suas barbatanas.

O grupo era composto por sereias e tritões, cada qual com escamas de cores diferentes, bem como seus cabelos e olhos. Eles avaliaram a situação por um momento, que parecia breve e ao mesmo tempo eterno. 

O tempo da humana estava acabando. Por fim, um sentimento de compaixão e bondade espalhou-se, e foi como se isso fosse o suficiente para acalmar tudo ao redor de todos eles.

Mesmo que a humana tivesse visto alguma coisa, já não importava mais. Logo ela deixaria sua humanidade para trás.

As sereias foram as primeiras no ritual, colocaram-se ao redor da garota quase inconsciente e, antes de darem as mãos, começaram a cantar. Os tritões seguiram os movimentos fazendo um circulo externo e mantendo os lábios fechados.

Stella e Jullie nunca tinham visto o processo antes e o canto as deixou maravilhadas. Não era como o som dos humanos. As vozes se propagavam na água com uma leveza aparentemente impossível e, apesar de não soarem completamente claras, a intenção era óbvia e palavras não eram necessárias.

Os tritões, por sua vez, mantinham uma base acústica ainda mais abafada, o timbre grosso soando por trás dos lábios fechados, apenas pelo tremor de suas cordas vocais.

Por fim, um dos tritões se aproximou, ficando no meio do círculo, junto com a garota loira. Não emitia qualquer tipo de som, mas seu olhar era concentrado. Ele fechou os olhos, e levantou a mão em direção a testa da menina. Tocou-a suavemente e da ponta de seus dedos saiu uma forte luz branca, que os envolveu.

Nem Stella nem Jullie sabiam se o brilho poderia ser visto pelos humanos da superfície, mas ambas duvidavam que eles reparassem, se fosse visível, ou que conseguissem enxergar alguma coisa, uma vez que a luz era muito forte; elas mesmas mal conseguiam ver o que se passava lá.

Aos poucos, o som do canto das sereias foi diminuindo, assim como o brilho. Quando tudo acabou, o oceano parecia estranhamente escuro. E, no centro da roda, não estava mais o tritão e a menina quase morta. Mas sim um tritão e uma sereia.

A ex-humana abriu os olhos voltando à consciência, soltou algumas bolhas de ar pela boca no que pareceu uma tosse ou quem sabe um sopro de vida preso à garganta.

Os humanos continuavam com o zunzunzum irritante de sempre, mas nem todos eram os porcalhões barulhentos quebradores de conchas. Talvez, ao contrário do que Jullie e Stella pensavam, os humanos não fossem vilões por completos, alguns ainda valiam à pena salvar, e certamente seriam salvos.

Como aquela menina. Afinal, se ela fosse tudo aquilo, ela teria deixado de existir durante a transformação, pois ao contrário do que diz a lenda, sereias nunca são cruéis.







Texto escrito com a linda da M. Deméter, dona do (my) Imaginary World, quase uma irmã e que juntou nossos pseudônimos sem problemas! <3

domingo, dezembro 22, 2013

Imaginary enemy


Então mandei alguns homens para a luta
E um voltou no meio da noite
Disse: "você viu meu inimigo?"
"Ele se parecia comigo"


O choro de criança. A pele avermelhada. Mais um tapa. O medo nos olhos. O baque da realidade que até então lhe era desconhecida, ou assim ele queria que fosse. A pergunta se repetia em sua mente: “O que foi que eu fiz?”. A culpa que lhe tomava. O medo agora fora substituído pelo impulso e pela raiva, e o amor jurado há tempos já fora esquecido. O fruto desse amor com o rosto manchado depois das lágrimas, a confusão tomando sua mente. Teclas pressionadas no telefone, e um pedido de desculpas abafado por juras de vingança. Como aquilo tudo começou? Ele não tinha ideia. Ninguém tinha. Apenas teve um início, e estava prestes a ter um fim. A luta fora perdida, e perdido ele também ficaria, pois bem no fundo ele sabia qual era seu centro, quem lhe fazia feliz. Uma pena que a felicidade não fora o suficiente para que se mantivesse estável, e a instabilidade o levou para a insanidade. A raiva voltou a lhe tomar a alma, e ele teria quebrado qualquer coisa, se isso fizesse com que fosse possível voltar no tempo. Uma janela, um prato, um copo, um espelho. Não havia nada que pudesse quebrar, e desconfiava que se tivesse um espelho por perto, não ousaria se aproximar dele. Não seria capaz de ver sua própria imagem, porque não sabia o que veria. O reflexo de quem era, do animal que havia se transformado ou a imagem de quem realmente era, do homem feliz de antigamente, não sabia quem lhe olharia de volta. Com as últimas forças que possuía, se forçou a recuar, e agora era ele quem chorava. Tudo havia acabado, enfim. Não sabia mais quem era. Sabia apenas que a guerra teve seu final. Jamais seria chamado de pai de novo, porque jamais mereceu. Jamais precisaria usar a aliança mais uma vez, porque era tudo sobre respeito, e respeito ele jamais teve. E jamais seria capaz de olhar seu reflexo de novo, pois para onde iria todos eram como ele; todos haviam sido presos em jaulas por serem monstros. Mas ele conseguiu constatar, antes de se transformar completamente em um animal, que todos lá eram como ele: soldados feridos em batalhas, soldados mortos em campo, soldados que atiraram em si mesmos. Inimigos pessoais uns dos outros.

sexta-feira, dezembro 13, 2013

Ao som de Ícaro


Não nascera para aquilo
Viver presa era seu terror
Estava cada vez mais cansada
E acostumara-se com o rancor

A ideia surgiu
Do desespero que sentia
E ao som de Ícaro,
Achou que nunca mais sofreria

Com a música em seus ouvidos,
Ela decidiu voar
Dentro de pouco tempo
Estaria sobrevoando o mar

Longe demais de Apolo,
Percebeu que a música era aviso
Com o chão se aproximando,
Apagou-se o sorriso

Muitos a  avisaram
Ela apenas riu
Agora era tarde
E o castigo a atingiu

Aquilo que lhe agradava
Agora era importuno
Não poderia mais se arrepender:
Foi abraçada por Netuno.

quarta-feira, dezembro 11, 2013

Relicário da alma



Para aquele que sempre fará parte de mim


Com uma pequena pétala de rosa branca, desejo-te toda a paz do mundo. Com um pingente de floco de neve, espero que toda a tristeza vá embora. Com uma fitinha anil, espero que jamais me esqueça. Com um pedacinho de corrente, espero que saiba que “nós” vai durar muito tempo. Com a luz da Lua, preencho o resto do espaço, com a clareza que gostaria de ter na mente e no coração. Com toda a minha esperança, espero que tudo dê certo. E com uma respiração funda, espero não me arrepender de ter lhe dado metade de mim, separada em pedacinhos pequenos. Sei que em breve me arrependerei, mas talvez tudo acabe bem; talvez você saiba quem sou, e então terei mais vergonha do que nunca de olhar em seu rosto. Mas talvez você apenas guarde como um singelo presente anônimo. Quem sabe você não seja um pouco mais romântico do que eu pensei? Talvez (mas apenas um talvez, que soa mais como esperança, no fundo da minha mente) este pequeno relicário te mostre mais sentimentos do que eu jamais seria capaz de dizer com palavras. Talvez te mostre que sou uma pessoa real. E quem sabe você não me presenteie com um relicário, também, ainda que você já seja parte de mim. Mais do que parece. Mais do que eu demonstro. Mais do que nunca.



Daquela que sempre terá um pouco de ti.

segunda-feira, dezembro 09, 2013

Sobre nomes e hábitos

O sininho tocou quando a porta foi aberta, e o vento frio de inverno cortou todos que estavam dentro da pequena biblioteca. Já estava demorando.

— Sabia que te encontraria aqui.
— Alguns hábitos nunca mudam.

Kallisto já estava começando a estranhar a demora dele em aparecer. Era quase tão pontual quanto ela. Ainda assim, não levantou o olhar do livro aberto em seu colo quando respondeu.

— Como consegue observar as pessoas ao mesmo tempo em que lê?

Ela finalmente olhou para ele.

— Vejo que ainda não perdeu a mania de fazer perguntas.
— Alguns hábitos nunca mudam.

Permaneceram algum tempo em silêncio. Ela já havia parado de ler, mas mantinha o olhar baixo. Ele esperava pacientemente sua resposta.

— Eu não observo ao mesmo tempo em que leio, mas para mim ambos não fazem muita diferença.

Dessa vez, ele quem ficou quieto, absorvendo o que ouviu. Não tinha entendido tudo, mas já começava a compreender Kallisto, e sabia que quanto menos perguntasse, mais respostas teria.

— Se não ler com atenção, não se entende um livro. — ela continuou. — E se não olhar bem, não se entende as pessoas. A diferença é que um livro é sempre o mesmo, enquanto as pessoas sempre mudam.
— Soa mais interessante. — ele comentou, olhando para o nada. Ela apenas concordou com um aceno de cabeça.

Um minuto se passou. Depois dois, e três.

— Acho as pessoas bastante engraçadas. — Kallisto falou, quase que para si mesma.
— Por que?
— Todos dizem que sou muito sozinha, mas no fundo todos são mais isolados do que eu. Tão fechados em seu próprio mundo que não veem quem quer seu bem ou seu mal.

Mais uma pausa. Era quase como se o tempo não passasse para eles.

— Hoje mais cedo duas meninas saíram daqui, carregadas de livros de romance. Uma chorava. A outra, que a consolava, parecia sua amiga, mas meio deslocada. Pago quanto você quiser que o namorado da primeira menina a traiu com a garota que a consolava, sem ela saber.
— Como você sabe?
— Não sei. Não com certeza. Só vou percebendo os gestos e os olhares, as histórias crio eu mesma. Acho que para isso me servem os livros.
— Não acredite tanto nas aparências. Elas funcionam mais como máscaras do que como espelhos.
— O que quer dizer? — a pergunta foi seca e sem emoção, mas ele preferia ouvi-la como com a curiosidade de uma criança.
— A história de que não devemos julgar um livro pela capa é verdadeira. Nunca achei que você pudesse falar tanto quanto fala em nossas conversas.
— Porque normalmente eu não falaria.

Ele riu suavemente. Ela não precisou fazer a pergunta em voz alta para que ele entendesse que estava sendo questionado e explicasse.

— É engraçado. Um de seus hábitos mudou.

Ela não riu. Muito pelo contrário, apenas ficou mais séria, mas ele não se importou; ela só não queria admitir que ele estava certo.

— Ora vamos, não se irrite, não é algo ruim! — ele parou para pensar — Pelo menos eu espero que não. Tenho mudado alguns hábitos também...
— Estou vendo. Não faz mais perguntas com frequência.

Por um momento, ele achou que ela pudesse ter ficado com raiva da pequena brincadeira que havia feito e fosse voltar a trancar-se dentro de si mesma, como em uma caixa de vidro, mas o sarcasmo presente no tom de voz quando ela voltou a falar o fez relaxar. Por maior que fosse o escárnio presente na voz dela, enquanto ela falasse, ele estaria tranquilo. Sabia que devia se preocupar apenas caso ela se calasse.

— Um pouco, sim... mas acho que isso talvez possa ser a convivência contigo. Minha mudança de hábito foi te conhecer.
— Eu não acho que conhecer uma pessoa nova seja uma mudança de hábito.
— Não. Mas mudar meus hábitos me permitiu conhecer alguém novo. Sabe, eu nunca havia entrado aqui antes de te conhecer. — ele confidenciou como quem conta um segredo.
— E resolveu senta-se e conversar com uma completa estranha. Você é insano.

Ele fingiu-se ultrajado com a observação. Estava se divertindo com a situação toda, mesmo que Kallisto mantivesse a expressão séria.

— Eu disse que nunca tinha entrado aqui antes, não que desconhecia o lugar. Passei em frente algumas vezes, achei curioso que você viesse todos os dias.
— Isso se chama perseguição, não curiosidade.

Ele riu abertamente.

— Isso se chama identificação. Você é tão normal quanto eu. Um pouco mais fechada, talvez, mas igual.



Ela manteve-se quieta, pensando no que ouviu. Ele esperou alguns minutos, mas percebeu que ela não diria mais nada. Levantou-se e, ao ajeitar o sobretudo cinza-chumbo, disse apenas mais uma palavra.

— Gregory.

Ela olhou-o, intrigada.

— Meu nome é Gregory. E eu não acho que um perseguidor diria como se chama para sua vítima.

Ela aceitou o desafio subentendido com um sorriso discreto.

— Kallisto. Mas lembre-se, vítimas são indefesas. Pessoas indefesas não dizem seus nomes assim tão fácil.

Olharam-se por mais algum tempo, mas nada foi dito. Por fim, ele riu suavemente mais uma vez, dando meia-volta e saindo pela mesma porta pela qual entrara. Kallisto, por outro lado, não voltou a ler o livro, mas saiu pouco tempo depois. Costumava ficar até mais tarde, mas não lhe faria mal quebrar um hábito uma vez ou outra.

sábado, novembro 30, 2013

Vagarosa


Vagarosa
Vaga, a rosa
Ora, vá!
Vá agora!
Vá embora, Rosa.

quarta-feira, setembro 04, 2013

Cores do Vento


Pra começar
Tente me ouvir
Sei que não falo bem
Mas é tudo por ti
Não sou pintora
Nem quero ser artista
Mas saiba que só você
Quem me inspira
Com a cor dos seus olhos,
Pintarei o céu
Campos de trigo sairão
Dos teus cabelos cor de mel
O que eu temia acontece
E não sei continuar, então
Mas eu juro, eu tento
Sei que um dia vou conseguir
E com as cores do vento
Espero chegar
Mais perto de ti.






leia mais aqui!
True Colors
Luz de Estrelas
Pó de Estrela
As Estrelas Cadentes
O Retorno de Saturno
Perigeu
Memories

quarta-feira, julho 24, 2013

Sobre cores e almas



— Não se cansa de vir aqui todos os dias?

A pergunta a pegou desprevenida, e Kallisto levantou os olhos do livro que lia, escondendo sua surpresa. Quase nunca falavam com ela, bem como ela quase nunca falava com os outros.

— As pessoas não se cansam daquilo que faz realmente bem.
— Mas você vem aqui todos os dias. Como pode sentir-se tão bem em um lugar tão simples?

Desta vez, Kallisto fechou o livro. Já havia perdido a concentração para lê-lo, de qualquer forma. Não sabia com quem estava falando, mas jamais sentira medo de estranhos. Eram pessoas como todas as outras, e ela mesma era estranha para muitos.

— Acho que por ser um lugar tão simples, se torna ignorado pelas pessoas. Sou ignorada pela maioria, também, embora não me importe com isso. Soa familiar para mim. Como um lar.
— Definiria seu lar como uma biblioteca antiga e pequena? — O estranho era tão jovem quanto ela, mas a curiosidade em seus grandes olhos azuis era genuína como a de uma criança.
Kallisto esperou que ele pudesse interpretar olhares tão bem quanto ela. Se fizesse esforço, talvez pudesse responder a pergunta, mas não queria. Era o tipo de coisa que não se diz em voz alta, só se sente. Gostava de pessoas assim, que pudessem ler pensamentos através de olhares. Pessoas assim, pessoas como ela, observavam mais do que falavam. Sentiam mais do que agiam, e por mais que isso a irritasse de vez em quando, era bom. Ela gostava de avaliar as pessoas assim, pelo que observava. Era assim que descobria quando alguém era digno de atenção. Era assim que aprendia, aos pouquinhos, novas formas de pensamento, e era assim também que aprendia mais sobre si mesma. Já havia descoberto várias coisas com essa técnica. Mas ainda não sabia por que queria tanto que ele fosse como ela.

— Sempre usa cores tão escuras? — Ele perguntou de novo, mas desta vez não olhava para os olhos da moça a sua frente, mas sim para suas roupas.
— Sempre faz tantas perguntas? — Ela lhe respondeu, e uma pontinha de raiva queimou em sua voz, tentando esconder a vergonha presente em seu rosto.
— Apenas quando a pessoa me interessa. Mas ainda não respondeu à última pergunta que fiz.
— Sempre. Cores escuras definem quem eu sou. Fazem parte de mim.

O rapaz sentou-se no lugar vago ao lado da menina no pequeno sofá avermelhado, em silêncio. Pesava, mentalmente, a revelação que ouviu. Quando falou, sua voz era arrastada, e tão calma e baixa que Kallisto poderia dizer que ele mesmo mal percebia que estava falando.

— Talvez não sejam parte de você. Talvez você seja parte delas. Talvez você não queira mudar. — Ela considerou a avaliação dele por um momento, mas logo a descartou, balançando a cabeça.
— Não sei para o que poderia mudar. Estão em minha alma, apenas.
— Sua alma não é escura como o cinza do seu casaco, ou como o azul de seu gorro. — Ela esperava que ele falasse algo do tipo, mas em forma de pergunta. Era estranho como conseguia entender a forma de pensar de quem quisesse apenas observando, mas não conseguia entender o jovem do seu lado, mesmo depois de tanta conversa. Ela não conseguia nem mesmo se lembrar da última vez que conversara por tanto tempo com alguém.
— Então talvez ela seja apagada como essa biblioteca.
— Não acho que ela seja apagada ou escura. Acho só que ela é fria, como o inverno.
— O que sabe sobre a alma das pessoas? — Dessa vez, a indiferença costumeira na voz de Kallisto era maior, e sua voz soava quase tão fria quanto o inverno, mas isso não o abalou.
— Ah, não sei muito. Sei mesmo é sobre os olhos. O pouco que sei sobre almas, são os olhos que me contam.

Ela se recusava a fazer suas perguntas em alto e bom som. Ao mesmo tempo, queria testá-lo. Se ele entendia dos olhos das pessoas como ela entendia das almas, então que decodificasse seus pensamentos sozinho.

— Já ouviu dizer que os olhos são as janelas da alma? É verdade, se você souber olhar. Gosto de conversar com as pessoas olhando em seus olhos porque assim aprendo mais sobre elas do que com qualquer pergunta, apesar de tudo. As pessoas mostram um pedacinho de suas almas através dos olhos, e eu levo um pedacinho de suas almas comigo também, depois de conhecê-las. — Ele explicou. — Seus olhos são escuros, mas sua alma não.
— Como tem tanta certeza?  — Pela primeira vez em muito tempo, Kallisto não se importou em demonstrar vergonha.
— Lembra-se de quando perguntei sobre você vir aqui todos os dias? Eu venho também.
— Nunca te vi antes.
— Porque eu aprendi a notar sem ser notado. Como você. Mas eu te notei, e você me notou agora. E agora eu também noto a pergunta em seus olhos, vê? Eu te notei porque você é como eu, e sei que sua alma não é escura como seus olhos e suas roupas porque a minha também não é.

Ela olhou fundo nos olhos azuis do desconhecido que, no momento, parecia conhecê-la há muitos anos. Ele subia no seu conceito aos poucos, e ela se divertia com a conversa, esperando apenas que seus olhos não a traíssem mais uma vez.

— Você é prepotente.
— Você é sincera. Eu gosto disso. — Ele sorriu, e se levantou.
— Aonde você vai?
— Engraçado, agora não sou eu quem faço as perguntas. — Ele observou, com um traço de provocação na voz.

Kallisto não o respondeu. Permaneceram em silêncio por um momento.

— Eu preciso ir. Mas voltarei amanhã, e sei que você vai voltar também. Ninguém consegue ficar muito tempo longe do que chamam de lar.

Kallisto não o respondeu mais uma vez, pois sabia que não precisava falar alto para que ele entendesse. Ele se foi, mas mesmo depois disso ela não voltou a ler o livro. Ainda pensava no que disseram, e foi então que percebeu que nem ao menos sabia o nome do rapaz que lhe havia feito companhia nos últimos minutos. Mas não importava; ele estava certo. Ele voltaria amanhã, e ela também. E ambos sabiam mais um sobre o outro do que saberiam se tivessem começado a conversa normalmente, porque conversaram pelos olhos, e pelos olhos viram as almas. O pouco que ainda não sabiam poderiam aprender aos poucos. Iriam aprender uma hora ou outra. Mas seria aos pouquinhos, bem aos pouquinhos. Afinal, suas bocas não falariam mais do que seus olhos jamais.

terça-feira, julho 16, 2013

Término repetido

Um vaso quebrado, uma foto rasgada, uma promessa descumprida. Um término repetido, mais lágrimas de raiva misturadas com a tristeza. A Nostalgia a deixava doente, e o arrependimento repetia em sua mente: “A culpa é sua! Viva com a consequência!”.

Brigava consigo mesma, enquanto tentava se fazer entender aquilo não valia a pena, e nem jamais iria valer, sabia disso desde o momento em que havia entrado naquele relacionamento. Mas bem no fundo de sua mente, algo dizia-lhe para tentar, sussurrando histórias de amor; uma voz suave que aos poucos se fez ouvida, merecida de reconhecimento.

Pedidos de perdão, novas fotografias sendo reveladas, novas promessas para de cumprir, e mais lágrimas. Dessa vez, de alegria. Com uma pitada de frustração, quem sabe. A voz que antes lhe sussurrava frases de amor, agora gritava canções. Mas ah, como se pode saber qual a voz da Razão, se na maioria das vezes a Loucura é mais atrativa? Esquecida, frágil e pequenina, era assim que a Sensatez se encontrava; encolhida num canto, abandonada no fundo da mente daquela que sempre clamou por sua presença. Murmurava para si mesma, sem nunca ser ouvida: “Oh, que tolice! Vai recomeçar tudo, é um ciclo sem fim! Um filhote de cachorro perseguindo sua cauda, é com isso que se parece!”. Murmurava com tanta tristeza que parecia ser a vítima de toda a situação, com tanta culpa que parecia arrependida que algo que jamais fez. E enquanto se lamentava em sua própria solidão, o verdadeiro culpado mais uma vez se fazia presente. Com ele, vieram novas promessas, novas juras de amor, e em breve viriam novos fantasmas do que se tornará um passado feliz e as lembranças do que ambos, culpado e vítima, já foram um dia.

terça-feira, julho 09, 2013

Indefinido



(com participação de Amanda Botelho)


Ele tinha nome de anjo
Textura de algodão
Cabelo de índio 
Mente sempre distante.
Incerto era o tom dos seus olhos
Queria viajar pelo globo
Ganhou até apelido, veja só!
Mochileiro de lugar-nenhum.

Ela tinha nome comum
O que a diferenciava era a mente:
Inconstante como só
Distante como a dele.
Feita de doce e fel
Ninguém a compreendia
Por isso se fez assim,
Um pouco sozinha.

Viola, violino, quem sabe um violão?
A quietude que, numa melodia,
Como cheiro de café fresco,
Aproximou a bailarina
E o restante de seus anseios.

Liras confundindo-se com harpas
Num aviso interno,
Os pensamentos gritavam
Mesmo assim não percebeu a armadilha
Viu-se presa num labirinto.

Por sua canção o amou
Observando-o sempre de longe.
Ao lado do garoto viajante
Continuou a garota que sempre foi:
Tornou-se a menina que se esconde.

Escondida permaneceu;
Achou que ninguém a percebia
Nem mesmo seu anjo nomeado
Mas restava-lhe a dúvida
E uma pequena esperança nasceu.

E agora:
O que houve com ela?
Ele, por fim, a percebeu?
Nada restou esclarecido
Muito menos o adeus.

domingo, julho 07, 2013

Tintura à Sangue



A jovem limpava o pincel, com cuidado. O quadro estava quase pronto. A paisagem era triste e sombria, de modo que as cores predominantes fossem o azul e o preto. Normalmente, usava cores alegres em suas pinturas. Porém, já usara o vermelho vezes demais; suas mãos ainda estavam sujas com a cor forte, fazendo contraste com as cores frias predominantes. Iniciara a pintura à cerca de um mês. Nunca demorara tanto para pintar um quadro, mas seu estado de espírito não ajudava. Fizera a paisagem baseada em si mesma. Ou melhor, em como se sentia.

Zoe sempre fora o tipo de pessoa explosiva. Carente, de fato, mas um tanto explosiva. Seus relacionamentos eram baseados no ciúme, e já perdera a amizade de muitos por causa desse sentimento. Mas não se perdoaria se o perdesse também. Afinal, estava tentando ao máximo manter a calma em situações de estresse e, graças a ele, descobrira na pintura mais do que um passatempo, mas uma nova forma de ver o mundo. Nunca antes imaginara que as cores pudessem expressar tão bem os sentimentos.

Em sua maioria, usava cores alegres, como o amarelo, o laranja e o vermelho; essas cores representavam bem a alegria que sentia quando estava com ele. A alegria que sentia em sua presença, no entanto, nunca fora suficiente para prevenir brigas. Muito pelo contrário, essas eram constantes. Haviam tentado todo o tipo de coisa para parar com isso, desde a velha terapia da pintura - de longe, a preferida de Zoe -, como também longas conversas, que acabavam em mais brigas. Era como se a tendência fosse sempre piorar, como se o relacionamento inicial perfeito que tiveram nunca tivesse existido. Ficava, de fato, cada vez mais difícil manter a calma, e nem sempre pintar ajudava. Mas nunca se sentira tão calma depois de uma briga como se sentia agora.

Pensava sozinha, ao mesmo tempo em que cantarolava baixinho uma música há muito esquecida. O melhor caminho a se tomar era fácil, bastava apenas não demonstrar seu ciúme. Afinal de contas, se não o mostrasse, não haveriam mais brigas. Mas não havia necessidade de tanto, achava ela. Não haveria mais briga nenhuma. A tão conhecida calmaria tornou a tomar conta de Zoe, quando ela finalmente terminou a pintura.
— Está pronto. — Sussurrou, olhando para o rosto daquele que tanto amara, agora sem vida. — Ficou bonito, não ficou?

Sua voz soava como a de uma criança que ganhara o presente de aniversário antes da data. A satisfação era óbvia. Um sorriso doce se abriu em sua face, ao olhar, com ternura, para a flor pintada em vermelho no quadro. Um bonito contraste com todo o preto dominante. De fato, agora parecia se encaixar exatamente no relacionamento passado de ambos: o preto misterioso e frio de Zoe, junto com o vermelho chamativo e cheio de vida dele. Bem, agora ambas as cores estavam relacionadas a ele. A partir daquele momento, ele poderia ver apenas o preto, e Zoe fizera questão de deixar sua marca, sua marca de orgulho, ciúme e violência no sangue que se espalhara na camisa outrora branca que ele vestia. Nunca mais irei quebrar o acordo que fiz comigo mesma, avaliou, enquanto lavava as mãos, sujas com sua tão adorada tinta-sangue.

sexta-feira, julho 05, 2013

Rozen Maiden

O pensamento distante,
Nem mesmo se importa com o instante

Expectativas desleais à minha esperança
E o doce sonho de voltar a ser criança

Uma lua roxa num céu já sem vida
Trazendo à tona um já esquecido sorriso de menina

Uma frágil boneca de porcelana
Será que alguém ainda a ama?

Mas ela sempre será guardada em uma estante
Com um sorriso errante

Escondida da tristeza mundana,
E tratada como nada além de uma boneca de porcelana

quarta-feira, julho 03, 2013

Sobre Florence



Em meio a rosas acordou
Olhou para o lado,
Viu apenas o vazio
E sozinha se lamentou

Há muito vivia assim.
Sempre se sentiu diferente
Não confiava em ninguém
Até que decidiu pelas rosas, enfim

Flores, sim, mas fiéis
Sempre estiveram ao seu redor
Em vasos ou em quadros
Pintados com um de seus vários pincéis

Tentou outras soluções
Talvez poeta, ou atriz
Mas tinha com elas, apenas com elas
A mais perfeita das relações

Muitos a julgaram
Ninguém a apoiou
Será que todos estariam como ela
Felizes onde chegaram?

Nada daquilo a perturbaria
Estava em paz consigo mesma
Fecharia os olhos, aguardando
O fim que nunca chegaria

Voltou ao lugar de onde veio
Plantou uma semente no vaso
Tão vazio quanto fora
Esperaria florescer, com anseio

Em meio a rosas foi dormir
A rotina era sempre a mesma
Mas tinha suas flores
Sua única razão de sorrir

segunda-feira, julho 01, 2013

Pequena Menina



Pequena menina,
do sapatinho de cristal
Contentada com a rotina
Sabe diferenciar bem e mal

Pequena menina,
curiosa e segura de si
Não vive sem a água cristalina
Cabelos vermelhos como rubi

Pequena menina,
rebelde, prefere um simples ladrão
Não segue qualquer tipo de doutrina
Está cansada de ser filha de sultão

Pequena menina,
corajosa, foi para a guerra
Voltou grande heroína,
venerada por toda sua terra

Pequena menina,
sempre com histórias a contar
Sabe todas elas de cor,
mas nunca para de sonhar

sábado, junho 29, 2013

O Pesadelo



A luz da lua não era suficiente para iluminar o campo, e a aura de morte pairava sobre todo o local. A jovem olhou ao seu redor,e a visão da destruição e de todos os cadáveres ensanguentados fez com que sentisse o gosto de bile em sua boca.

Não se lembrava ao certo como havia chegado lá, mas de algum modo sabia se tratar de uma guerra, causada por uma rebelião, talvez. Os gritos enchiam seus ouvidos, e as pessoas correndo ao seu redor não passavam de um borrão indistinto em meio à fumaça de casas em chamas.

Balançou a cabeça, tentando clarear  os pensamentos: seu irmão. Precisava achar seu irmão. Há muito já não via seu pai; talvez fosse um dos mortos caídos. Mas seu irmão, ah, ele er muito novo para a guerra. Na opinião dela, mas não havia escolha.

Uma explosão em algum lugar ali perto a levou de volta à realidade, e ela voltou a correr. Ouvia os soldados marchando atrás de si, e mais gritos.

Correu por mais alguns metros, e o campo se tornou praticamente vazio. Algumas sombras se moviam, quase no limite da visão. Eram pessoas? Por apenas alguns segundos, a esperança tomou conta de si, e ela voltou a correr. Ele estava lá, tinha que estar. Então, compreendeu porque o campo estava tão vazio. Como podia ter sido tão boba? Tentou voltar atrás, mas já era tarde.

A mina terrestre explodiu, e a visão da jovem escureceu. Ela sentiu todo seu corpo pegar fogo, e tudo se apagou.

***

A luz do sol entrou no quarto, e bateu no rosto da jovem adormecida. Ela acordou de repente, suando frio por causa do pesadelo que tivera. Era isso, fora só um pesadelo. Então, um grito ecoou do andar de baixo da casa, e ela sentiu o pânico crescer dentro de si novamente. Levantou da cama, se dirigiu até o quarto do irmão, e confirmou o que mais temia: ele não estava na cama. O pesadelo estava apenas começando.

quinta-feira, junho 27, 2013

O pecado da Bailarina



Pequena bailarina, sonhadora e perdida
Cansada do seu viver
Marionete,
quase sem vida

Quer o que lhe faz mal
Tem certeza que de que pode sobreviver!
Uma pequena dúvida surge em sua cabeça
E sua vontade continua confidencial

Necessita do inexistente
A saudade a domina
Enquanto a nostalgia a consome
Como eram as coisas antigamente?

As luzes do palco se apagam,
e a pequena começa uma oração silenciosa
Os pés se movem nos tão conhecidos passos, sem qualquer tipo de sentimento
Como lutar contra a escuridão perniciosa?

Precisa do perdão universal,
mas ora, qual foi seu pecado?
A trilha sonora melancólica chega ao fim;
E ela poderá descansar, afinal.

terça-feira, junho 25, 2013

O brilho das Estrelas

(para Mica)


A menina levantou da cama, onde passara a maior parte do dia, mas mal sentiu os pés tocarem o chão frio. Não prestou atenção em seu próprio caminho, quando se dirigiu ao banheiro, onde escovou os dentes, e trocou de roupa. Voltar para a cama também não a fez se sentir mais confortável. A garganta seca ainda lhe incomodava, e ela já não conseguia mais chorar uma lágrima que fosse. Se cobriu, e adormeceu mais rápido do que achava ser possível.

O sol iluminava a praia, e ela adorava a sensação da areia entre os dedos de seus pés. Não era raro ela ir à praia, mas quando ia com ele, certamente era muito mais divertido. Até mesmo a mais simples das coisas os faziam rir - como um pequeno passarinho querendo voar contra o vento. Mas o que a mais fazia sorrir, na verdade, era sua companhia. Seu sorriso iluminava tudo ao seu redor, e o azul dos seus olhos era mais brilhante e intenso que o próprio mar. A promessa era bem simples: nunca iriam se separar. Porém, nem todas as promessas são cumpridas.

A jovem não entendia o porquê, e nem gostava de se lembrar como ele havia partido. Era tão injusto. Ela aprendeu, num curto período de tempo, como a vida é injusta, especialmente com os bons.

Acordou suando frio, embora não tivesse tido nenhum pesadelo. As memórias dos mais diferentes momentos atravessando sua mente ao mesmo tempo. Respirou fundo alguns minutos e, já mais calma, se levantou para abrir a janela. Olhou para o céu estrelado, e finalmente entendeu. Ele nunca havia a deixado, afinal de contas. Ele estava certo. Amigos de verdade nunca partem. Um sorriso pequeno brotou em seus lábios e a menina voltou para a cama, ainda pensando nas estrelas, tão brilhantes quanto os olhos dele.

domingo, junho 23, 2013

Marionete





(para Nym)



Dançava a bailarina torta
Dançava até o sol se pôr
Dançava a bailarina torta
Bailava à procura de um amor


Ginny Weasley estava cansada de tudo a sua volta. Sempre fora tratada como nada mais do que a jovem Weasley, protegida por seus irmãos, como uma delicada bailarina, capaz de quebrar ao mais simples movimento. Mas, ora, a pequena bailarina já estava quebrada! Porém, agora a menina se sentia mais livre do que nunca, longe de quase todos os irmãos. E o que mais a bailarina poderia fazer, se não dançar, agora que ela própria poderia fazer a  música para sua tão bem treinada coreografia?

Não mais controlada por alguém, pôde sair dançando por onde quer que houvesse luz; toda a escuridão de estar apaixonada pelo menino que sobreviveu já estava cansando-a. A escuridão, porém, a atraía. Assim como o olhar misterioso daquele que ela nem mesmo havia tido a chance de tocar. Afinal, o que mais era preciso? Ele a entendia como ninguém nunca havia feito.

Cada segundo passado era como uma eternidade, em que ela se empenhava em descobrir cada detalhe possível sobre ele. Ao mesmo tempo, uma pequena voz em sua cabeça, que não parecia fazer parte de seu subconsciente, sussurrava-lhe: E já não basta? Sabe seu nome, o que mais é preciso?

Não era como se alguém pudesse lhe dizer o que fazer. A pequena bailarina agora agia por si só. Criou sua própria música, e a dançava em todos os lugares; não sabia onde poderia achar alguém que a valorizasse por sua própria personalidade, alguém que pudesse de fato apreciar e aplaudir sua dança, ele parecia sua melhor opção. Esperava ansiosamente o dia em que poderia se provar e, depois de meses, a espera chegou ao fim. Aquele era o grande dia. 

Havia muito tempo que ela vinha conversando com ele, aquele da qual ela sabia tudo, mas ao mesmo tempo não sabia nada. Tinha certeza que com ele seria diferente, tinha que ser! Mas as coisas não saíram como o esperado. As vaias foram ouvidas, enquanto a pequena Weasley era morta. Então era isso. Mais uma vez ela estava errada; mais uma vez a pequena bailarina foi vaiada, e mais uma vez ela foi jogada no chão, como uma marionete com as cordas cortadas. Dessa vez, no entando, ela não poderia se levantar e voltar a dançar. Ficaria ali, no chão, como nada além de um boneco quebrado, uma bailarina torta que nunca mais poderia dançar sua tão adorada coreografia.

sexta-feira, junho 21, 2013

Nightmares






As trevas me perseguiam, mais uma vez. Era quase como um padrão, que não havia como se acostumar. Ouvia o choro desesperado de uma criança, mas não conseguia descobrir de onde vinha. Gritos aterrorizantes e vozes desconhecidas também chegavam aos meus ouvidos, junto com uma gargalhada sádica. Esta, porém, me era familiar. Era a minha risada. Sabia que, mesmo que o desespero e o desejo de fazer tudo aquilo parar fossem grandes, uma pequena parte de mim gostava de tudo aquilo. E essa parte de mim ria, com prazer cada vez maior.

Lentamente, todo o barulho se cessou, inclusive minha própria voz. A escuridão dominou, e não consegui ver mais nada. O desespero tomou conta de mim novamente. O que iria acontecer a seguir? Quase como se respondendo à minha pergunta, outra voz ecoou no silêncio sepulcral; suave e, ainda assim, grossa. Me assustava, como tudo o mais ali. Sussurrava palavras desconexas, e eu não conseguia identificar sua origem. Parecia estar em todos os lugares.

Então, tão de repente quanto começou, acabou. Abri os olhos, e a escuridão ainda dominava. Mas não era a escuridão assustadora e nefasta de meu pesadelo; estava em meu quarto, e podia ver alguns poucos móveis e objetos iluminados pelo luar que entrava pela janela.

Com um choque, percebi que o pranto da criança ainda se fazia presente, e a realidade me atingiu. Tudo aquilo de fato havia acontecido, e — eu me atrevo a confessar? — muito mais vezes do que eu parecia ser capaz de aguentar. Atravessei o quarto; meus pés descalços tocando o chão frio. Me debrucei sobre um berço de madeira, a fonte do choro.

Olhei a criança ali deitada, que diminuiu o choro quando me viu. Uma menina, enrolada em um lençol prateado. Seus olhos eram negros como a noite, como a escuridão que me cercava. Percebi que, no fundo, tudo aquilo fazia sentido. A compreensão me atingiu. De súbito, entendi de quem era a voz presente em todos os meus pesadelos, e me senti mais calma, como se a parte de mim que se sentia à vontade em cada sonho que julgava horrível finalmente tivesse assumido o controle. Os pesadelos nunca iriam me deixar, eram parte de mim, assim como a menininha, com o rosto manchado de lágrimas, na minha frente.

Você é a fonte de tudo, não é mesmo? Minha pequena criança, meu pequeno erro. Bem vinda ao meu mundo, conheça meus medos, filha do pesadelo.

quarta-feira, junho 19, 2013

Menina-anil

Não é nem um pouco sutil
Tem atitude meio hostil
Sempre escondida pelo sorriso juvenil
Gosta das chuvas de abril
Quiçá o inverno faça mais seu perfil
Da janela observa a noite, sentada no peitoril
Sorriso bobo, infantil
Essa é a sua realidade, menina-anil.

segunda-feira, junho 17, 2013

Luzes de Natal


(para o Luke)


Desceu as escadas de madeira, ignorando seus rangidos, e atravessou a sala de estar. Nada em sua decoração indicava ser véspera de Natal. Era um homem. Jovem, certo, mas um homem. E, segundo suas crenças, não deveriam comemorar o Natal. Não que ele não gostasse da data, oh, é certo que ele gosta! Mas ele apenas desistiu. De tudo. Costumava comemorar com a família, quando pequeno. Mas ele estava sozinho agora, e não via motivos para comemorar. Ele havia escolhido isso, e sempre fora um hábito seu escolher apenas uma entre duas opções opostas.

Acendeu um cigarro, e ficou ali, apenas observando a rua. Perdeu a noção do tempo e de quantos cigarros fumou. Não queria entrar e ter de lidar com a casa cheia de garrafas vazias de bebidas; não gostava daquele vício. Mas não fazia muita diferença, no fundo, pois sem as bebidas e o cigarro, não seria ele. Viu uma família passar, em direção à praça, provavelmente para ver o coro de crianças. Elas sempre se apresentavam nessa época do ano, mas ele nunca havia assistido. Poderia muito bem ouvir de casa, em seu mundo em ruínas particular.

Ele nunca iria admitir para ninguém, talvez nem mesmo para ele mesmo, mas sentia falta de como tudo era antes. Não era um pensamento frequente, porém. Quem sabe ele só sinta falta da comemoração natalina. Ele sempre gostou de ver a casa cheia e decorada, o conforto proporcionado. E das luzes. Ah, como ele sentia falta disso! As luzes sempre foram sua parte preferida em toda a festa. Mas não valia a pena pensar nisso.

Levantou-se quando o coral estava começando a terceira música. Caminhou com passos lentos de volta para a casa fria e cinzenta, assim como sua alma. Ignorou todas as garrafas vazias sobre a mesa, ligou a televisão velha, e sentou-se no sofá velho. Levantou-se pouco depois, e voltou a subir as escadas, em direção ao quarto. Equilibrou-se em cima de um banco qualquer, e tirou de cima do armário uma caixa de papelão, empoeirada e esquecida há muito tempo. Tirou dela um longo fio com minúsculas lâmpadas, que enrolou em torno da cabeceira da cama, e ligou na tomada. O quarto foi preenchido por luzes coloridas, exatamente como quando era criança.

Deitou na cama, e fitou o teto por alguns minutos. Pode ouvir fogos de artifício vindos da praça. Meia-noite. Fechou os olhos e adormeceu quase imediatamente, sem nem mesmo olhar de novo para suas tão adoradas luzes de Natal.

sábado, junho 15, 2013

Just a Dream





(com participação de Verenna Klein)

Abby percebeu-se num jardim. Era um bocado estranho, e ela se sentia muito pequena com os arbustos três vezes maiores que ela – não que fosse algo difícil: ela tinha sete anos e parecia uma bonequinha com o vestido e as maria-chiquinhas. Desfez o penteado com as mãos e sentou-se num balanço que lá havia.

A criança distraiu-se com o vai-vem do balanço, até que viu um pequeno ponto cor-de-rosa numa mesa. Uma borboleta, talvez. Levantou-se e foi até o móvel. Era, de fato, uma borboleta. Tentava levantar voo, mas não conseguia. Abby assistiu a cena durante alguns minutos, sem saber o que fazer.

— Ela não vai conseguir. — A voz chegou aos seus ouvidos, e ela se virou assustada. Podia jurar que, há apenas alguns minutos, estava sozinha no jardim.

— Quem é você? — A menina perguntou, com algum receio. A mulher que havia lhe dirigido a palavra era uma completa estranha, mas ao mesmo tempo lhe inspirava confiança.

— Ora, minha querida, nomes não são importantes; seus significados são muito mais, embora muito menos valorizados. Mas te chamam de Abby, não é mesmo?

— O que é você? — Abby não se importava em saber como a criatura sabia seu nome. Apenas sabia, então poupava apresentações chatas.

— Tenho vários nomes, mas você me chamaria de fada. — Os olhos da menina brilharam, mas a fada pôs um dedo em seus lábios e acrescentou: — Olhe, a borboleta desistiu agora.

— Desistiu do que?

— De viver, pequena.

Abby encarou a fada estupefata. A situação toda era estranha, e a pequena criatura cintilante – que não tinha mais que metade do seu tamanho – levantou-se e soprou a borboleta, que explodiu em pedaços coloridos.

— Por que você fez isso?

— Apenas a impedi de sofrer mais. — A fada deu de ombros. — Além do mais, é minha função.

— Eu pensei que fadas fossem boazinhas. — A menina murmurou. Sentia vontade de chorar, mas não faria.

— Eu seria má se a deixasse ali. Além disso, o sonho é teu, e a borboleta é parte de sua mente. Você que a permitiu morrer.

— Se isto é um sonho, o que você faz nele?

— Um aviso, como o que a borboleta ganharia se realmente existisse e pudesse sonhar.

— Que aviso?

— De morte. — Abby arregalou os olhos com a resposta inesperada. Tropeçou alguns passos para trás, e a fada suspirou, parecendo cansada. Como se tivesse passado por aquela situação inúmeras vezes. — Não aja como se eu fosse a culpada. O Destino é incompreendido, mas de vital importância. Imagine o caos que o mundo seria se não fosse por ele? Mas eu não sou o Destino, afinal de contas; apenas cuido para que ele seja cumprido.

Inocente como toda criança, Abby se surpreendeu com as palavras da fada. Nunca havia parado para pensar por esse ponto de vista e, apesar de fazer sentido, a ideia era, em si, cruel.

— Se isso é tudo coisa da minha cabeça... — ela começou, hesitante. — então pode acabar a hora que eu quiser, não é mesmo?

Ela nem mesmo esperou qualquer resposta da fada. Fechou os olhos, e desejou com todas as forças que tudo isso acabasse. Abriu os olhos, com receio. Nada havia mudado.


— Por que eu não posso voltar? — A pequena menina encarou a criatura. — Por que você tem que ser tão má?

— Eu não sou má, menina. Já irei deixá-la ir.

Abby olhou os olhos para a fada. Tinha quase chorado, mas depois resolvera que a fada não merecia suas lágrimas, então sacudiu a cabeça e espantou as lágrimas que queriam surgir.

— Então por que não deixa agora?

— Precisava dar-lhe isso. – murmurou e depositou um pequeno amuleto na mão da menina. – Agora vá.

E quando Abby piscou, já não estava mais no jardim. Sua cabeça estava apoiada ainda no vidro embaçado do automóvel, e seus pais conversavam um pouco quando ela acordou.

— Mamãe! Eu vi... – mas antes que a pequena pudesse narrar suas aventuras, sua mãe gritou. E, embora a pequena não tivesse consciência disso mais, o carro capotou pela ladeira, com o vidro estilhaçando-se em mil pedacinhos e o metal pressionando contra os corpos ensanguentados dela e de seus pais. Tentou chamá-los, mas não recebeu nenhuma resposta. Chorava muito, e sentia todo seu corpo doer. As palavras da fada voltavam à sua mente, e dessa vez a menina entendeu a gravidade do que lhe foi dito. Mais uma lágrima escorreu pela sua bochecha, e a menina fechou os olhos, pela última vez.

Talvez agora Abby voltasse para o reino dos sonhos, onde uma fada lhe diria verdades sobre tudo.

Fim.

quinta-feira, junho 13, 2013

Joana

Como uma filha de Zeus,
Aos céus queria subir
Fechou os olhos
E as estrelas pôde sentir

“Entre as nuvens!”
Era onde Joana queria estar
O mais alto que pudesse
Junto ao Sol poderia brilhar

Como um avião,
Joana decolou
E, mais alto do que nunca,
A menina sonhou


Raios e trovões
Eles lhe fariam companhia
Jamais lhe assustaram
Só lhe traziam nostalgia

A chuva não molhava seu cabelo
Estava alto demais para isso acontecer
Resolveu ignorar o pensamento
De que um dia teria que descer

Segundos, décadas ou milênios?
Perdeu a noção do tempo
E assim, bem aos poucos,
Desaprendeu a controlar o vento

Como uma nuvem que se desfaz
O sonho acabou
E tão rápido quanto subiu
Joana despencou.

terça-feira, junho 11, 2013

Como todos os Dias

Estava sentada numa mesa com apenas duas cadeiras, sozinha. Gostava do tempo quente, mas o sol atrapalhava sua vista e sua concentração, e por isso a jovem mulher estava do lado de dentro do pequeno café de sempre, na mesma mesa de sempre.

As pessoas conversavam ao seu redor, mas ela não entendia o que falavam; sequer as ouvia. Sua atenção estava voltada para o notebook na sua frente, com o mesmo arquivo, nunca terminado. Ao lado do notebook, uma xícara de capuccino, esquecida e com o conteúdo frio, com açúcar em excesso. Nunca o bebia, embora o pedisse todos os dias. Sabia que se não pedisse nada, não poderia ficar ali. A mesma garçonete que a atendia todos os dias também sabia disso, mas nunca fez qualquer tipo de reclamação. Ambas sabiam que aquele lugar era uma espécie de santuário para a jovem escritora.

Era acostumada à rotina. Usava sempre os mesmos tipos de roupa, os cabelos acaju soltos, e nunca havia trocado a armação dos óculos, quadrada e azul. Também estava acostumada a não saber de nada. Quem sabe isso fizesse parte de sua tão conhecida e adorada rotina. Repetia as mesmas perguntas durante todo o tempo, em sua própria mente. E nunca, durante todas as tardes que passara naquele café, conseguia respondê-las. Os pensamentos se misturavam, perguntas complexas com as observações mais simples, pedaços de conversa da qual se lembrava, ou que sua mente captava, como uma estação de rádio. No fim, sempre apagava tudo o que havia escrito no seu inseparável notebook.

Detestava isso. Toda sua vida dependia do que escrevia, ou assim gostava de pensar. Mas não tinha vida, como também não tinha nada escrito. Era sempre assim, mas dessa rotina ela não gostava. A repetia todos os dias haviam quase dois meses, mas era como se sempre fosse a primeira vez, pois nunca saia do lugar. Sempre ia embora com as mesma dúvidas e pagava pela mesma xícara de capuccino, da qual não bebia uma gota sequer.

Esperava o dia em que tudo mudaria, mas também tinha medo. Não sabia o que esperar dele. O desconhecido não faz sentido. Ajeitou os óculos de armação quadrada sobre o nariz, e voltou a digitar compulsivamente, embora não entendesse nem mesmo o que escrevia. Não entendia nada, embora visse e passasse por tudo de novo a cada dia. Colocou o ponto final de mais um parágrafo - que em breve seria apagado, de novo -, e sorriu. Havia entendido, enfim. Nada iria mudar, pois ela nunca achava a resposta! Ou talvez essa fosse a resposta.

Talvez tivesse achado a resposta, mas qual era a questão? Não, a resposta não era essa. O sorriso se alargou quando percebeu que seu medo era infundado. Pelo menos por enquanto. Não sabia o que deveria fazer. Talvez devesse ter medo da mudança antes dela ocorrer. Gostava da sua vida assim, no fundo. Talvez devesse ter medo depois das mudanças terminarem, porque só depois disso poderia dizer com certeza o que havia mudado para melhor. Riu de si mesma quando percebeu que pensava exatamente isso todos os dias, mas nunca nada mudava. E então, sem nem mesmo perceber, bebeu um gole do capuccino excessivamente doce. O mesmo de todos os dias.

domingo, junho 09, 2013

Como num conto de fadas


(para a Mahna)


A menina meio caminhava, meio pulava. Um sorriso brincava em seu rosto, como se soubesse de alguma coisa da qual mais ninguém tinha conhecimento. Muitos a olhavam como se pensassem que ela é louca, mas ela não ligava, muito pelo contrário; se divertia bastante com essa hipótese.

Esperava aquele dia há muito tempo, talvez desde sempre. Quando criança, sempre sonhara com contos de fadas, e nunca desistiu de viver um. Não por causa de príncipes com cavalos brancos, ou castelos e todas as suas riquezas. Não, isso nunca a impressionou. Mas se encantava por sereias, elfos e fadas. Conforme crescia, os sonhos diminuíram, como era de se esperar, mas nunca desapareceram. Não, apenas ficaram em algum lugar, dentro dela, adormecidos. E, agora, estavam acordados, e mais vivos do que nunca.

Há algum tempo atrás, conhecera seu sonho em pessoa. Isso porque Mah era, por completo, uma fada. E ninguém que a conhecesse bem, com seu jeito delicado e protetor, poderia discordar disso. Virou um costume para a menina, chamada Lívia, chamá-la de Fada Azul. Quando Mah se apresentou por esse nome, Lívia riu, pensando se tratar de uma brincadeira. Era verdade, porém. Não poderia duvidar por muito tempo, tendo como prova os olhos azuis cristalinos de Mah e - por que não contar esse detalhe? - Lívia podia jurar já ter visto uma aura azul da cor do céu em torno da amiga. Conversava com a Fada todos os dias, e sentia como se ela fosse uma irmã.

Alguns meses depois, porém, Mah parou de vir conversar com a menina. Ela se preocupou, ainda que soubesse o motivo do sumiço da Fada; ela estava com problemas no lugar de onde viera, apenas porque fez amizades durante o período em que estava aqui, na Terra. As visitas se tornaram cada vez mais raras, e Lívia perdeu toda e qualquer esperanças de um dia rever sua quase-irmã. Acordou, porém, numa manhã de primavera, e se surpreendeu ao encontrar a janela de seu quarto aberta, e uma tulipa roxa no peitoril. Não tinha qualquer tipo de bilhete, mas Lívia tinha uma boa sensação a respeito daquilo. Embora ainda fosse cedo, se arrumou e se dirigiu a um pequeno parque, no centro da cidade, onde conhecera Mah. Não sabia exatamente porque estava fazendo isso, mas algo lhe dizia que deveria ir para lá.

O dia estava igualzinho ao que conheceu a menina-fada, percebeu. O céu estava claro, e o sol brilhava, mas o calor não era grande. Um grupo de crianças brincava, e alguns idosos faziam caminhava. E, ao olhar para os balanços pendurados em árvores, há poucos metros de onde estava, percebeu uma certa menina de olhos azuis como o céu, e aura tão tranquila quanto era de verdade. O sorriso se alargou ao perceber que, de fato, conhecera uma fada, como queria desde pequena. Seu coração se apertou quando percebeu que, assim como as Fadas Madrinhas dos contos de fadas que lia quando pequena, a Mah também teria que ir embora. Mas assim como as histórias, nunca se esqueceria dela.

sexta-feira, junho 07, 2013

Aurora em Redenção





A luz da aurora invadia o quarto, incidindo-se sobre uma jovem, caída ao chão. Os cabelos espalhados, como uma aura, emolduravam o rosto quase adormecido. Sentia a doce sensação de ser invadida pelo sono mais uma vez. O sofrimento de ser tirada de seu paraíso particular mais uma vez seria vencido; já não importava se ela era um anjo, cujas asas foram cortadas. Porém, a dúvida voltava a invadir sua mente: deveria resistir à tentação, como o bom anjo que fora um dia?

Oh, não, minha pequena criança, aproveite o momento. Sempre quis fazer isso sem culpa, não é mesmo? Pois então, o faça! Preste atenção em todo o campo florido à sua volta, no céu azul, no canto dos pássaros que lhe enche os ouvidos.

Faça isso, menina, faça o que quiser. Viva na luz do Sol, nade no mais azul dos oceanos, respire o mais puro dos ares.

Então, antes que caia a noite, com sua melancolia e solidão, volte para sua realidade. Se lamente, como faz todos os dias, chore cada lágrima que seu corpo é capaz de suportar enquanto se torna mais forte a cada batalha perdida. Mas não aja como sempre, não pense em desistir. Já deveria estar acostumada, de qualquer forma. É sempre assim. Não tenha pena do que é desumano, não se martirize pelo que não lhe diz culpa.

Adormeça em seu mais profundo sono, não se preocupe com o despertar; o teatro de seu paraíso há muito acabou, mas ainda há seu mundo encantado para lhe salvar.

quarta-feira, junho 05, 2013

Aleatoriedade Paradoxal



Menina aleatória,
não se sente à vontade
em sua natureza simplória
O que faz nesta cidade?

Vive para a misticidade,
ela é sua vida
Sonha com sereias, bruxas e fadas
Torne-as realidade!

Qual seu nome, sua identidade?
Verônica, Rebeca, Sofia
Não lembra sua idade,
Não vive em harmonia

Antítese e paradoxo,
nada mais faz sentido
Não sabe mais o que é ortodoxo
Atende apenas por seu apelido

Prefere outra dimensão
Seria ela irreal ou não?
Persistente,
mas ainda teme o perigo iminente

Apenas aleatória
Passeia pelos jardins,
perdida nos pensamentos,
pensando em seus vários fins.

quinta-feira, março 28, 2013

Mon étoile éternelle


23:40

Andava calmamente pelas ruas do centro da cidade, tão conhecida por mim. O frio da noite era cortante, mas não era isso que mais me incomodava. Era tarde, e poucas eram as lojas que ainda estavam abertas. A floricultura era uma das excessões e, ao passar por lá, comprei um buquê. Sempre achei engraçado você gostar de flores, ao contrário de mim; sempre as achei sem graça. Acho que acertei em comprar cravos vermelhos, pareciam ser suas preferidas. As lembranças me assolavam, e senti vontade de chorar, mas me controlei.

23:55

Você se lembra de como era quando estávamos juntos? Sempre pensamos que nunca fosse acabar. De fato, nunca acabou, nem vai acabar, não de verdade. Me lembro de cada noite que passamos em claro, falando sobre amenidades e olhando para as estrelas. As lágrimas voltaram a encher meus olhos. Tinha que ser forte.

23:59

Agora tudo parece tão surreal, como um passado distante, ou uma fantasia que nunca se tornou realidade. Se lembra de quando víamos aviões, e pensávamos ser estrelas? Sempre soubemos que os desejos nunca iriam se realizar, afinal, não eram estrelas de verdade, mas era divertido, não é mesmo? Costumávamos dizer que nada poderia nos separar, uma vez que nem mesmo as estrelas podem separar o céu. Oh, nem mesmo sei porque me pergunto, é claro que não se lembra de nenhuma dessas coisas. A primeira de muitas lágrimas caiu, mas não me preocupei em secá-la, era inútil.

00:00

Meia-noite. Doze de junho, dia dos namorados. Há dois anos, você se declarou pra mim. Há dois anos, aceitei ser sua namorada. Há um ano, você me deixou.
Interrompi os pensamentos quando passei pelos portões prateados que atravessava quase toda semana. O lugar em si não me fazia bem, mas sua presença me acalmava. Minha força de vontade se renovou, como sempre acontecia quando te via, e sequei minhas lágrimas. Coloquei as flores no seu túmulo, ao lado de um pequeno porta-retrato com sua foto. Nunca esquecerei seu sorriso, tenho certeza. De onde você está agora, em meio às estrelas que tanto admiramos, me diga: você ainda sorri, por saber que de fato nada físico pôde nos separar? É uma pena que eu nunca poderei saber a resposta.
 Feliz dia dos namorados.