sábado, novembro 01, 2014

Shoot Love


A mulher fechava o sutiã, virada de costas para a cama. A calça já estava vestida, embora o zíper e o botão ainda estivessem abertos. O cabelo bagunçado insinuava que ela havia acabado de acordar, mas a face afogueada e o olhar afobado entregavam o que ela realmente estava fazendo há apenas alguns minutos.

Ela deu alguns passos para a frente, vencendo a distância entre a cama e a enorme janela do quarto, todo decorado de modo minimalista, em tons de preto, branco e prateado. Com um movimento rápido, ela afastou as cortinas, olhando para o horizonte colorido de laranja e a luz do sol da tarde invadiu o quarto. Então, desviou o olhar para baixo, sabendo que ninguém poderia vê-la de roupas íntimas. Não da altura em que estava, de onde os carros que passavam na rua movimentada pareciam de brinquedo.

— Bom. O sol ainda não se pôs. — Ela comentou, de modo vago. — Não vou me atrasar para o jantar com Steven.

O comentário foi aleatório, mas ela só se tocou do impacto que poderia causar depois que já havia falado. O homem, ainda deitado na cama, esfregou o rosto, cansado.

— Isso não pode continuar assim, Donna.
— E o que quer que façamos, Michael? — Ela retrucou, exasperada. — Já conversamos sobre isso! Não posso simplesmente acabar tudo com Steven, não depois de cinco anos de relacionamento sério.

Michael não respondeu, mas ela percebeu a linha do maxilar dele tornando-se mais rígida, e soube que a resposta não o agradou. Ela emendou, com voz amorosa e ligeiramente triste:

— Mas também não posso perder você.

Ele permaneceu em silêncio, mas levantou-se, ainda de cueca, e se dirigiu ao banheiro da suíte. No caminho, recolheu a blusa de Donna, jogada de qualquer jeito no chão, e atirou na direção dela.

Fez o possível para se demorar no banheiro, embora só fosse lavar o rosto. Aquilo não estava certo, e precisava acabar. Mas seria muito mais fácil se não estivesse tão ligado a Donna, ele pensou, esfregando os olhos e encarando seu próprio reflexo no espelho.

Michael nunca achou que fosse do tipo capaz de trair alguém. Ainda assim, se encontrava naquela situação revoltante até mesmo para ele. Ainda que não conhecesse Steven – noivo e, dali a alguns meses, marido de Donna – sentia como se estivesse traindo-o tanto quanto a noiva infiel que ele tinha.

Em sua defesa, podia afirmar que tanto ele quanto Donna tentaram evitar o relacionamento proibido a todo custo. Mas as defesas são valeriam de nada, ele sabia. Não importava o quanto tivessem resistido, o fato é que cederam.

Ele tinha plena consciência de que estava no banheiro há apenas alguns minutos, mas o peso em sua consciência fazia parecer horas. Quando voltou ao quarto, Donna já estava inteiramente vestida, e arrumando algo em sua bolsa, apoiada na cama desarrumada.

A mulher levantou-se e virou em sua direção, com um sorriso afetado. Ele podia perceber no olhar dela que estava tão perdida quanto ele próprio. Já haviam conversado sobre a situação dos dois milhares de vezes, mas a cada vez que o faziam, pareciam prender-se um ao outro mais do que já estavam presos antes.

Michael não se moveu, permanecendo encostado no batente da porta do banheiro, e Donna o encarou por alguns instantes, parecendo sem saber o que fazer. Por mais que estivesse aparentemente calma, era possível ver em seu olhar a preocupação e a culpa. Tomando uma decisão silenciosa, enfim, ela moveu-se até o amante com passos rápidos, depositando um beijo no canto de sua boca, e então se dirigiu até a sala do apartamento, murmurando uma despedida apressada.

Pouco depois ele ouviu a porta de entrada fechando, e o clique baixinho da fechadura. Suspirando alto, o homem sentou na beira da cama, esfregando o rosto de forma cansada, e então jogando-se para trás, até estar deitado.

Aquilo estava acabando com ele. E com Donna também, ele tinha certeza, por mais que ela tentasse se mostrar indiferente ao assunto. Isso, claro, quando se permitia sair do pequeno e quase perfeito mundo de vidro que ambos criaram e falar sobre a realidade muito mais repugnante da qual fugiam.

Paradoxalmente, Michael jamais poderia se dizer arrependido da relação que mantinha com Donna, mas amaldiçoava o dia em que se conheceram. Não parecia ter se passado mais do que dois ou três dias desde então, mas ele sabia que já estavam juntos há quase seis meses. Ainda assim, ele se lembrava perfeitamente de quando a conheceu em um bar, de como tudo não parecia passar de uma diversão de uma noite regada a bebida, e de como, no dia seguinte, nenhum dos dois resistiu em ligar, querendo mais um encontro proibido.

Os encontros, pouco a pouco, se tornaram cada vez mais frequentes, ao ponto dele arriscar dizer que conhecia o corpo de Donna tão bem quanto o noivo da mulher. E, apesar de o tempo que passavam juntos ser principalmente focado no contato físico, por várias vezes eles discutiram que atitude tomariam em relação ao seu envolvimento.

Por mais que Donna não fosse capaz de usar essa palavra para se descrever, Michael sabia que ela era romântica. Não teria coragem de terminar uma relação de anos com o noivo, especialmente sabendo o quanto ele a amava. Michael, por sua vez, não teria coragem de deixá-la ir. Não sabia como nem porquê, mas estava preso a ela como jamais esteve preso a algo ou alguém antes. E foi assim, mantendo as duas relações, que ela matou o amor, pouco a pouco.

O problema de Donna talvez fosse valorizar demais o amor. Michael sabia que ela o amava, e ele a amava com mesma intensidade, se duvidar até mais. Mas ela também amava o noivo, ainda que não da forma que deveria. E valorizava demais o amor que Steven tinha por ela, o suficiente para que não tivesse coragem de acabar a relação.

E se por um lado o pecado de Donna era compreensível, o dele era inaceitável. Puro egoismo, ele sabia. Estava destruindo, por puro capricho, um namoro de anos. Sentia-se como duas almas diferentes habitando o mesmo corpo. Uma queria desesperadamente fazer a coisa certa, abandonar aquele relacionamento caótico antes que causasse mais estragos. A outra, porém, ignorava tudo isso em nome de poucas horas ao lado da mulher que queria mais que tudo.

Desistindo de apenas ficar na cama remoendo o que no momento não podia ser mudado, Michael levantou-se, e estava a meio caminho da janela quando pisou em algo que não havia reparado estar caído no tapete. O homem não pode evitar um sorriso irônico ao abaixar-se para pegar o pequeno objeto. O anel de noivado de Donna.

Ele nunca havia entendido o porquê da mania dela de tirá-lo em todos os seus encontros, uma vez que ambos estavam bem conscientes do status de relacionamento da moça. Mas, de qualquer forma, ela o tirava, e aparentemente naquele dia havia deixado cair de sua bolsa, quando se arrumava para ir embora. Ela deveria ter tido mais cuidado. As chances de que Steven não percebesse a ausência da joia eram quase nulas, e Michael não fazia ideia do que Donna faria para se justificar ou redimir. Ou talvez soubesse muito bem.

Balançando a cabeça e abafando um risinho de escárnio, ele guardou o anel na gaveta do criado-mudo, onde lembraria de procurar e devolver para a dona assim que ela viesse vê-lo mais uma vez. Michael sentia-se horrível por pensar naquilo, mas não podia evitar uma pequena pontada de esperança no coração de que, da próxima vez que Donna viesse, não precisasse mais do anel, e nem de sigilo nenhum.

Afinal de contas, apenas naquele momento, a parte dele que não dava a mínima importância para o quão errado era aquilo tudo estava no controle, e aquela mesma parte era tão fraca quanto determinada. Ao menos, era determinada o suficiente para não deixá-la ir, do mesmo modo que ela não o abandonaria. Juntos, eram tão fortes quanto dependentes um do outro. Não poderiam se deixar ir embora, não quando ficavam tão perdidos, quando separados. Não quando juraram, inconscientemente, estarem juntos não importasse o custo. Não quando eram escravos do amor que matavam pouco a pouco.

Um comentário:

  1. Ah, eu sempre adorei seus romances. Fiquei com tanta pena da Donna, do Michael e também do Steven. Acho que você deveria continuar essa história. Fiquei curioso para saber se a Donna realmente esqueceu o anel de propósito.

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