domingo, dezembro 07, 2014

Um Dia

Um dia você nasce

E faz vários planos
Sem nem imaginar
Que tudo se modifica
Com o passar dos anos

Um dia você cresce

E descobre que as nuvens não são
Feitas de algodão
E lembra que as coisas não eram
Do jeito que estão

Um dia você cresce

E quer tudo do jeito que era
Todos os detalhes
E o que aconteceu
Na última primavera

Um dia você cresce

E tudo virou história
Você não sabe quem é
Apenas mais um carro
Sem trajetória

Um dia você renasce

E quer tentar tudo
Com a música alta
E o resto do universo
No mudo.

quinta-feira, novembro 20, 2014

Treacherous

Susanna saiu do carro assim que o pai estacionou, nervosa. Ela detestava viagens em família, com todas as suas forças, e praguejava mentalmente todos os palavrões que sabia, enquanto ajudava os pais e a irmã a tirarem as malas do carro.

Havia apenas uma coisa que a fazia aturar as viagens em família e, ironicamente, essa única coisa era também a mesma que a fazia detestá-las. Uma pontadinha de esperança ainda restava no fundo de sua mente, e ela olhou para a casa de praia onde ficariam.

Um outro carro já estava estacionado ali perto, um Volkswagen Spacefox preto. A garota praguejou baixinho. Tarde demais. Ela ainda torcia para que o carro dos tios tivesse quebrado na estrada, talvez assim ela tivesse um pouco de paz durante as férias. Mas, aparentemente, o destino preferia rir dela do que ajudá-la pelo menos uma vez na vida.

— Falou alguma coisa, Susie? — Seu pai perguntou, batendo a mala do carro após tirar a última bolsa.
— Não, pai, foi impressão sua. — Ela disfarçou rapidamente.

O homem ia falar mais alguma coisa, mas ao menos dessa vez a sorte sorriu a favor da garota, e uma voz feminina chamou, saindo da casa alguns metros distante:

— Aí estão vocês! Pensamos que não viriam mais! — A mulher sorriu, aproximando-se enquanto enxugava as mãos no avental preso na cintura.
— Cintia! — O pai de Susanna a cumprimentou, sorrindo. — Você está ótima! Onde está o Dave?
— Lá dentro, me ajudando com o almoço.

A mulher já havia se aproximado o suficiente para abraçar o irmão, e agora se virava para cumprimentar a cunhada.

— Susie! Você está linda! — Ela disse, segurando o rosto da sobrinha, que forçou um sorriso.
— Aposto que o Adrian também. — Jennifer, mãe de Susie, perguntou, e a garota xingou mentalmente. Ela não esperava que tivesse que encarar a verdade assim, logo de cara. — Ele veio?
— Veio, claro. Está lá dentro, terminando de guardar as coisas.

E lá se ia, sua última esperança de paz naquela viagem.

— SUSIE! — Sua irmã, Victoria, chamou. Pelo grau de irritação em sua voz, já estava chamando há um bom tempo. — Dá pra acordar e vir me ajudar? Obrigada.
— Eu não devia, não com essa sua educação. — Susie resmungou de volta.

Apesar de ser quatro anos mais nova, Victoria já era tão geniosa quanto a irmã, que tinha dezesseis anos. Era bastante claro o quanto as duas eram unidas, e sempre defendiam uma a outra, quando preciso, mas isso não significava que não brigassem. Muito pelo contrário, era raro ver as duas se tratando como amigas, por livre e espontânea vontade e em um dia normal.

Susanna desistiu de enrolar mais tempo. Uma hora ou outra teria que encará-lo mesmo, que ao menos fosse em companhia de outra pessoa, para evitar fazer qualquer coisa da qual fosse se arrepender depois. Ela jogou a mochila no ombro, e ajudou a irmã a pegar uma das malas que seu pai havia deixado no chão, e as duas se dirigiram à casa de praia, enquanto os adultos ficaram para trás, conversando.

Era tradição da família passar ao menos duas semanas das férias na casa de praia, uma vez que Carl morava com a esposa, Jennifer, e as duas filhas em uma cidade diferente da que vivia sua irmã, Cintia, com o marido e o filho. Com exceção das férias, eles só se viam em datas comemorativas, como Natal, formaturas e aniversários. E podiam continuar assim, na opinião de Susanna.

A essa altura, as duas meninas já estavam no segundo andar da casa, e podiam ouvir as vozes adultas no andar de baixo. Provavelmente haviam entrado pouco depois das duas.

As duas meninas subiram com as malas de roupas, enquanto o pai trouxera as coisas que costumavam usar quando inventavam de “acampar” na praia, como barracas, lanternas e sacos de dormir. Já haviam subido a escada e atravessavam o corredor do segundo andar, procurando o quarto onde ficariam, quando uma das portas se abriu, e um garoto de dezoito anos saiu.

O olhar dele passou rapidamente de surpresa por vê-las ali para um certo quê de malícia ao olhar para Susanna.

— Ah, já chegaram? Não ouvi o carro estacionando. E aí, Vic? — Ele cumprimentou a mais nova, antes de se virar para a prima mais velha, com um olhar provocador e um sorriso torto que ela se perguntou se a irmão realmente não havia percebido. — E olá, Susanna.
— Oi, Adrian. — Ela o cumprimentou, a contragosto.
— Querem ajuda com as malas? — Ele se ofereceu, erguendo as sobrancelhas. — Posso mostrar o quarto.

Susanna olhou-o ameaçadoramente, ao mesmo tempo em que torcia para não estar corando. A irmã ainda era nova e um bocado lerda para entender indiretas nada inocentes como as que o primo mandava, mas ela certamente perceberia algo se visse a irmã corando de vergonha.

— Não, obrigada. Nós vimos aqui todos os anos, podemos achar nossos quartos. — Ela respondeu, seca.

Ele sorriu divertido e saiu da frente delas, indicando o caminho para que passassem, antes de seguir o caminho pelo qual elas vieram, para descer as escadas.

— Você podia ser mais educada — Victoria reclamou, quando achou que o primo já havia ido. — Ele só estava tentando ajudar.

Susanna não respondeu. Em parte, porque sabia que a irmã não estava completamente errada, e em parte porque sabia que, se respondesse, Adrian ainda poderia ouvi-las. Elas entraram no quarto que dividiriam com o primo, e arrumaram boa parte das roupas que levaram.

Quando começaram a tradição de viajar para a casa de praia durante as férias, tanto Susanna quanto Victoria e Adrian se recusaram a dividir quartos com os pais. A casa só possuía dois quartos, porém, e o máximo que poderiam fazer na divisão de cômodos era deixar um dos quartos para os mais novos, e o outro para os adultos. Ninguém ficou muito satisfeito com a escolha, mas foi aceita assim mesmo, e nunca mais mudou.

Elas desceram alguns bons minutos depois, após arrumar as próprias roupas em um dos quartos, e as dos pais no quarto ao lado. Quando chegaram na cozinha, Adrian estava encostado no batente da porta que dava para o exterior da casa, seus pais terminavam de arrumar a mesa para o almoço, e seus tios terminavam de preparar a refeição.

— Ah, até que enfim. — Jennifer comentou, quando as viu entrar no cômodo. — O almoço já está pronto, já íamos chamar vocês.

O almoço passou calmo e praticamente em silêncio, apenas com conversas e comentários ocasionais entre os mais velhos. Victoria se mantinha alheia a tudo que era dito, e Susanna sentia, vez ou outra, o olhar de Adrian em si, da mesma forma que o olhava discretamente, de tempos em tempos.

Algum tempo depois, quando todos já haviam acabado de comer e a louça já havia sido lavada, Susanna tentou, discretamente, escapar para o sótão da casa. Provavelmente não havia sido limpo, e estava coberto de poeira, mas ao menos lá teria um pouco de paz, antes que inventassem alguma tarefa para que ela ajudasse. Ela passou no quarto, antes, apenas para pegar seu caderno de desenhos, um lápis e uma borracha.

Ela acendeu a luz do cômodo. Era fraca, mas ao menos para desenhar serviria. Usando um grande baú como encosto, ela se sentou, respirando fundo e procurando alguma inspiração. Enquanto mantinha os olhos fechados, podia ouvir os passos e o falatório no andar de baixo. Victoria, a essa hora, provavelmente estava implorando para que todos fossem para a praia. Com sorte, entenderiam que o sumiço dela era um sinal para que fosse deixada em paz.

Pouco a pouco, o desenho foi tomando forma, e a garota ia se acalmando. Toda vez que fazia essa viagem em família anual, algo dava errado, ou corria um risco enorme de terminar mal. Sempre pelo mesmo motivo. Mas, por mais que não gostasse dessas férias, não podia negar que o lugar era lindo.

Susie já havia perdido a noção do tempo que estava lá. Podia ser vinte minutos, ou duas horas. Tudo que ela sabia era que o desenho já estava quase pronto, quando os passos que ela ouvia no andar de baixo se aproximaram gradativamente, e uma sombra se projetou sobre o caderno de desenhos, tampando a luz que ela usava para desenhar.

— Olá, priminha. — Ele disse quando ela olhou para cima, apenas para encontrá-lo sorrindo e olhando-a nos olhos, com o cabelo caindo sobre o rosto.
— Você sabe muito bem que não sou mais criança para ficar me chamando de “priminha”. —Susie respondeu, com um sorriso desafiador.

Ele riu baixo, se movendo para ficar de frente para a garota, e então sentando-se no chão.

— Vamos, me desenhe como uma de suas garotas francesas. — Ele pediu, colocando a mão na testa de forma dramática.
— Citações de filmes não vão me conquistar, priminho. Achei que tinha desistido há tempos.
— Alguns hábitos nunca morrem. — Ele comentou. — Como o seu, de me ignorar só quando estamos perto de outras pessoas.
— E o que você queria que eu fizesse, Adrian?
— Tudo bem, eu não te culpo. É muito difícil resistir aos impulsos? — Ele provocou, malicioso.
— Não fui eu quem passou dos limites da primeira vez, lembra? — Susie retrucou, com o mesmo tom de malícia.

Ele jogou a cabeça para trás, rindo.

— Essa é a Susanna que eu conheço! Mas, de qualquer forma, não vim discutir a relação. Não somos um casal de velhos. — Ele cortou o assunto, balançando a mão. — Estou bancando o mensageiro. Nós vamos para a praia, me pediram para te chamar.
— Obrigada, mas eu não vou.
— Susie, qual é. — Adrian revirou os olhos. — Você prefere mesmo ficar aqui no sótão desenhando, enquanto podia estar na praia?
— Nós teremos duas semanas para aproveitar a praia, posso me dar um dia de folga para desenhar. — A garota tentou argumentar.

Ele ficou quieto, olhando ao redor, como se procurasse um bom argumento em meio às caixas de papelão que lotavam o sótão. Por fim, suspirou cansado e voltou a olhar para a prima.

— Prometo que não vou fazer nada enquanto estivermos lá. Até porque não sou burro de tentar algo com nossos pais e sua irmã por perto. — Ele prometeu. — Além do mais, você pode levar o caderno de desenho. E, se não for, vai perder a incrível oportunidade de me ver em roupa de banho.

Susie não pode sufocar uma risada, e Adrian também sorriu, ao ver que ela não estava mais séria. O jovem se levantou, estendendo a mão para a prima. Ela considerou as opções por alguns segundos, antes de suspirar cansada, e aceitar a ajuda do mais velho para se levantar.

— Eu vou. — Ela concordou. — Mas vou levar o caderno de desenho.
— Sinta-se à vontade. — O jovem retrucou de imediato, indicando com os braços o caminho para que ela passasse.



Susie se revirava no colchão, sem conseguir dormir. Ela estava exausta, depois das horas de viagem no carro mais cedo, e da tarde que passara na praia, mas, ainda assim, não conseguia pegar no sono. Sem ter como ver as horas, ela não fazia a menor ideia de quanto tempo já fazia que estava ali, só sabia que com certeza havia ido deitar há mais de uma hora.

Mesmo que tivesse relutado no começo, ela não podia negar que foi uma boa ideia sair de casa. Victoria, sua irmã, já tinha 12 anos, mas não deixava de agir como uma criança toda vez que iam até a praia. Susanna, por outro lado, preferia fica sossegada lendo um livro à sombra do guarda-sol ou, como fizera hoje, desenhando.

Ou ao menos ela tentara desenhar, porque toda hora sua atenção era desviada com os pais e tios tentando manter uma conversa ou com os gritinhos de sua irmã enquanto jogava frescobol com Adrian. Aparentemente, o jovem sem querer acertara a bolinha na cabeça da prima mais nova. Mais de dez vezes. E sem se dar o trabalho de pedir desculpas, uma vez que estava muito ocupado rindo enquanto ela reclamava.

Por fim, a garota largou o caderno e o lápis, desistindo de desenhar o que quer que fosse, e não pode evitar o riso vendo justo a irmã, que sempre dizia para ela parar de trocar farpas com Adrian, se irritando e sendo irritada pelo primo.

Susanna até tentou passar despercebida por Adrian e Victoria enquanto se levantava da canga que havia estirado na areia, para sentar-se, e se dirigia até o mar, para um mergulho rápido. Os esforços, porém, foram em vão, uma vez que, bem quando estava saindo da água, os dois apareceram, empurrando-a de volta, e fingindo afogá-la. Ainda que todo o tempo que passaram brincando como crianças e jogando água uns nos outros tivesse passado em paz e Susanna estivesse com o humor muito melhor, não podia simplesmente ignorar a preocupação no fundo da mente.

Porque, assim como não podia ignorar a preocupação, também não podia ignorar a pequena parte do seu cérebro que registrava todas as pequenas ações de Adrian, reparando em todos os detalhes do que ele fazia. Ela tentou espantar esses pensamentos para longe, mas não conseguiu. Como todas as outras vezes, desde que ela tinha treze anos e tudo aquilo começara.

Susanna esfregou os olhos, deitada na cama. Como as coisas podiam ter se complicado tanto em apenas três anos? Não era tanto tempo assim. Ela sempre tivera uma relação relativamente boa com Adrian, e agora toda vez que se viam em reuniões familiares era a mesma coisa: uma hora nada parecia ter mudado, para depois brigarem como se fossem gato e rato. É claro que ela sabia muito bem que ambos só brigavam para tentar se afastar um do outro, mas nunca dava certo. No final, sempre se atraiam, como polos diferentes de um ímã.

Ela ouviu o rangido de madeira do outro lado do quarto e, por reflexo, fechou os olhos. Pouco depois, o som baixo e abafado de passos veio daquela direção, se aproximando dela, para então passar direto e seguir até a porta. O barulho da maçaneta teria passado despercebido por qualquer um que estivesse dormindo, mas ela foi capaz de ouvi-lo. Susie esperou o som indicando que a porta havia se fechado de novo, contou alguns segundos e então sentou-se no colchão. Ela olhou em volta, apertando os olhos e tentando enxergar quem havia levantado. Victoria parecia em sono profundo, mas a cama de Adrian estava vazia.

A jovem franziu a testa, estranhando a situação. Adrian tinha sono pesado, não costumava se levantar durante a noite. Ela considerou as opções por um momento, e foi se amaldiçoando por ser tão curiosa que Susanna afastou as cobertas para se levantar. Pé ante pé e fazendo o mínimo de barulho possível, ela girou a maçaneta, saindo do quarto em completo silêncio.

Ela olhou os dois lados do corredor, mas não havia sinal do primo. A porta do banheiro estava encostada, mas a luz apagada indicava que não havia ninguém lá. Susie se aproximou da escada, tentando perceber algum movimento no andar de baixo, e ouviu o bater da porta da sala.

Adrian estava louco, com certeza. Por que motivo ele sairia de casa no meio da madrugada? Susanna tinha pleno conhecimento de que o primo não era sonâmbulo. A garota praguejou mentalmente por ser tão curiosa, e desceu as escadas, apressando o passo ligeiramente para chegar na varanda a tempo de ver onde o garoto estava indo.

Ele já estava alguns metros afastado da casa, descendo o pequeno declive que levava à praia propriamente dita. Apenas o facho de luz de uma lanterna iluminava o caminho que ele seguia, andando calmamente. Susanna acelerou o passo mais um pouco, passando para uma quase corrida, até alcançá-lo.

— Adrian! Adrian! — Ela chamou, irritada. — O que pensa que está fazendo?

O jovem não a respondeu, apenas passou a caminhar mais devagar até que a prima chegasse perto o suficiente.

— Se vai vir comigo, talvez queira isso. — Ele comentou despreocupadamente, estendendo para a menina outra lanterna.

Susanna sentiu a raiva queimar dentro dela. Ele sabia que ela o seguiria desde o momento em que saíra do quarto? Ela aceitou a lanterna, de má vontade, antes de voltar a falar:

— Você não respondeu minha pergunta.
— Qual pergunta? — Ele perguntou, com as sobrancelhas arqueadas e um ar de desentendido, assim que ela chegou ao lado dele.
— Por que você sempre foge de tudo? — Ela perguntou, frustrada, antes de explicar como quem fala com uma criança de dois anos que descumpriu uma regra: — Por que raios você saiu de casa no meio da madrugada?
— Preciso caminhar um pouco. — Adrian respondeu, como se fosse simples. — E um momento… eu fujo de tudo?

Ele parou de caminhar, parecendo indignado. Susanna também parou de andar, alguns passos depois, e virou-se para o primo, desafiando-o com o olhar. O silêncio era absoluto na praia, e a única iluminação vinha da lua e das duas lanternas que os dois seguravam.

— Sim, você. — Susanna reafirmou, irritada. — É você quem fica me provocando e depois se esquiva antes de assumir qualquer coisa.
— Com “qualquer coisa” você quer dizer um relacionamento? — Adrian desdenhou. — Porque se for, espero que você tenha alguma ideia de como chegar para nossos pais e dizer “pai, mãe, sei que nós somos primos, mas estamos namorando”.

Ele esperou uma resposta, com a sobrancelha arqueada, mas a garota continuou em silêncio, sem saber o que dizer.

— Se não fosse por isso, poderíamos ter algo mais? — Ela perguntou, por fim, com um fio de esperança na voz baixa.
— Eu poderia considerar a ideia, se você não fosse tão inconstante. — Adrian a cortou. — Você foge de mim sempre que tem alguém por perto, mas quando estamos fora dos olhares dos outros, é uma pessoa completamente diferente.
— E como você espera que eu aja? Respondendo suas provocações na frente dos nossos pais? — Ela perguntou, de forma retórica. — A melhor coisa que eu poderia fazer seria fugir de você.
— Uma pena que você não consegue, não é, priminha? — Ele provocou, sorrindo e se aproximando dela. — Se conseguisse, não teria me seguido até aqui.
— Você fala como se pudesse me controlar. — Susanna observou, com um sorriso sarcástico.

Adrian se aproximou mais, até estar perigosamente perto.

— É porque eu posso.

E, antes que a garota pudesse empurrá-lo, ele a beijou, e ela sentiu como se perdesse todo o controle e noção de realidade. As mãos foram parar no pescoço dele, puxando-o para mais perto, enquanto ele a segurava firmemente pela cintura.

Meu Deus, como Susanna sentira falta dele. Jamais admitiria em voz alta, mas não podia negar para si mesma que, em momentos como aquele, em que ambos falavam apenas com as mãos, ela faria tudo que Adrian pedisse.

Os dois se separaram depois do que pareceu uma eternidade, mas poderiam ter ficado ali por horas.

— Como eu disse. — Ele repetiu, um pouco ofegante depois do longo beijo. — Você não resiste a mim. E, se quer saber, nem eu resisto a você. Não é como se fosse uma escolha.
— Soa mais simples quando você fala.
— Mas é simples. Nós quem complicamos. — Ele respondeu, sorrindo.
— Nós complicamos porque é perigoso, Adrian. — Susie tentou argumentar.
— E a viagem não vale a pena? — O garoto retrucou, com um sorriso torto, roçando o nariz no dela.

Ela riu baixo. Touché. Antes que pudesse dizer alguma coisa, porém, Adrian colocou o dedo sobre os lábios dela, pedindo silêncio, e se afastou rapidamente. Pouco depois, Susanna entendeu o porquê. Há alguns metros de distância, na direção da casa, outro faixo de luz se aproximava, até que Victoria entrou no campo de visão dos dois adolescentes, com uma expressão que misturava sono e curiosidade.

— O que vocês estão fazendo aqui? São quase três horas da manhã! — Ela perguntou. Susanna estava prestes a dar a mesma desculpa que Adrian dera para ela alguns minutos atrás, mas o garoto respondeu mais rápido:
— A Susie desceu para beber água, ouviu um barulho estranho aqui fora e me chamou para ver o que era.
— Acharam alguma coisa? — Vic perguntou, com medo.
— Não. — Adrian respondeu, despreocupadamente. — Deve ter sido só algum bicho, nada demais. Já estávamos voltando.

Susanna não conseguia acreditar. Como a irmã havia acreditado numa desculpa tão esfarrapada quanto aquela? Ela já havia virado de costas para voltar para a casa, e Adrian também já começava a andar, mas Susie continuava parada no mesmo lugar, sorrindo para si mesma.

— Vai ficar aí? — Adrian perguntou, com uma sobrancelha arqueada, ao ver a prima alguns passos atrás.
— Não. — Ela respondeu, vagamente. — Não, já estou indo.

Talvez agora ela pudesse dormir em paz, sabendo que talvez valesse a pena continuar com o relacionamento às escondidas com o primo. E, mesmo que não valesse, depois ela pensaria naquilo. No momento, tudo em que ela conseguia pensar era no nome de Adrian, e na certeza de que quanto mais aquilo fosse imprudente, mais ela gostaria. Foi com isso em mente que ela o seguiu para casa, sabendo que, ao menos daquela vez, as férias poderiam seguir sem nenhum imprevisto.

quinta-feira, novembro 13, 2014

Dead!

A maçaneta da porta foi forçada uma, duas, três vezes, até finalmente ceder e abrir. Os móveis estavam todos empoeirados, o interior da casa estava todo escuro, e a sala foi iluminada apenas pela luz da lua, alta e cheia no céu sem estrelas.

— Conseguimos! — A adolescente cantou vitória, rindo histericamente.
— Shhh, fique quieta! — A outra ralhou, se esforçando para não rir também. — Podem ouvir a gente!

Elas entraram na casa, com passos rápidos e trôpegos. Assim que a última delas entrou na casa abandonada, fechou a porta atrás de si, deixando do lado de fora o riso longe das
crianças que aproveitavam a noite de Halloween, e o silêncio parecia querer tomar o local, mas não durou muito.

— Ebony! Por que não esperou acendermos a luz? Está muito escuro! — Ashley, a que
havia aberto a porta, reclamou com a última a entrar.

Antes que a porta pudesse ser aberta de novo, uma luz fraca iluminou o ambiente. Cassidy, que até então estivera quieta, acendera um fósforo. A luz durou pouco, mas foi o suficiente para que Hillary conseguisse achar o interruptor e acender a luz, que piscou algumas vezes antes de se estabilizar, amarelada e fraca.

— Meu Deus, ela morava aqui? — Ebony perguntou com repulsa, avaliando o cômodo onde estavam. — Essa casa é horrorosa.
— Imagino que não seja tão ruim assim embaixo de tanta camada de poeira. — Hillary replicou, sarcástica.
— Vocês vão mesmo ficar discutindo a aparência da casa? Sério? — Cassidy perguntou, arqueando uma sobrancelha.
— Pois é! — Ashley concordou com a amiga. — Se querem mesmo saber se a casa era diferente, vamos perguntar a ela.

As outras meninas riram, voltando a avaliar o hall e zombar da decoração que, segundo elas, era de mau gosto e fora de moda. Nenhuma delas reparou a porta se trancando sem que ninguém tocasse a chave.

Não havia ninguém por perto para impedi-las de fazer o que já estavam fazendo; pouco a pouco, zombar do hall de entrada da casa abandonada há quase dois anos perdeu a graça, e elas voltaram a atenção para o que realmente haviam ido fazer ali.

Cassidy seguiu em direção ao corredor que ligava a saleta ao restante da casa, sendo seguida das amigas. Quadros cobertos por panos empoeirados cobriam as paredes, até que o corredor terminou em uma sala de estar, tão suja e escura quando o hall em que estiveram há pouco tempo. A lareira não era acesa ou limpa há muito mais tempo do que a casa estava abandonada, com certeza, pela quantidade de sujeira acumulada em seu interior. Teias de aranha cobriam os cantos das paredes, e com as luzes fracas, tudo parecia mais assustador. A sala só possuía uma estante com livros tão antigos e grossos que poderiam pertencer a uma biblioteca, uma poltrona em frente a lareira e um sofá de três lugares. Os assentos agora estavam cobertos com longos lençóis que um dia foram brancos, mas que naquele momento estavam acinzentados.

E, certamente, as meninas não foram as primeiras a arrombar a casa, porque o vidro da janela estava quebrado, e fora coberto com tábuas pelo lado de fora. Uma porta dava para a cozinha, mas elas não foram até lá; se tudo parecia ter sido abandonado do jeito que estava quando a família morava lá, com móveis, objetos de decoração e derivados, elas não queriam nem imaginar o estado dos alimentos, se ainda havia algum ali.

Em vez disso, elas seguiram, pé ante pé, até a uma escada no canto esquerdo da sala. A madeira parecia de boa qualidade, mas estava destruída por cupins, e o carpete estava escurecido e imundo. Os degraus rangiam, mas o medo que começava a assolar cada uma delas não era suficiente para abafar a adrenalina.

O hall do andar superior da casa era ainda mais bizarro, se isso era possível. O cenário parecia ter saído de um filme de terror. As tábuas do piso de madeira rangiam, e no centro do cômodo havia um tapete, imundo e puído, com pedras de vários tamanhos que aparentemente haviam sido usadas para quebrar a janela. O lustre um dia até poderia ter sido bonito, mas agora pendia de modo medonho, balançado pelo vento entrando através da janela de vidros quebrados. Os buracos no vidro permitiam a entrada de um pouco da luz da lua no ambiente, o que fazia sombras bizarras serem projetadas no chão, provocadas pelos galhos das árvores no quintal.

Ebony havia achado uma lanterna na mochila que carregava, e agora tentava fazê-la acender; de última hora a garota lembrou-se de colocá-la junto com as outras coisas que levariam, por segurança, mas não se lembrou de trocar as pilhas.

— Não é de se admirar que ela nunca nos convidou para vir aqui. — Hillary comentou, sussurrando. — De onde essa casa saiu, um filme de terror?

A última frase saiu meio trêmula, como um meio riso. A jovem estava tentando quebrar a tensão, mas até que enfim todas estavam começando a ficar nervosas. Nenhuma delas achou que seria tão perturbador quanto estava sendo, mas estavam decididas a ir até o fim. Não seria a aparência de uma casa malcuidada que as fariam desistir, não era assim que funcionavam.

— Vamos logo com isso. — Ebony falou, tentando abrir a porta mais perto de onde estavam. De início, ela nem mesmo se mexeu, e a garota jogou o peso de seu ombro contra a madeira, que finalmente cedeu.

O quarto era tão vazio quanto os outros cômodos em que estiveram, mas parecia ter pertencido a um casal. A cama larga e bem-arrumada tinha dois criados-mudos, um de cada lado, e o reflexo das meninas paradas no batente da porta as encaravam de dentro de um espelho, descascado e pendurado na parede em cima da cama.

Depois de avaliar o cômodo, elas deram meia-volta, em busca do quarto certo. Passaram por mais dois antes de encontrá-lo: um banheiro cujo armário sobre a pia estava aberto e coberto de teias de aranhas, e uma banheira imunda e que aparentemente era o novo lar de alguns bichos e insetos.

O outro quarto em que entraram era, sem dúvidas, o mais bizarro. Sua decoração não era em nada diferente das outras que haviam visto, pelo contrário. Era uma das mais minimalistas, mas isso só piorava.

De frente para a porta havia uma janela, tampada por cortinas que iam até o chão. Na parede esquerda, uma cômoda de madeira simples, com alguns porta-retratos em sua superfície. Na parede oposta, um berço com um móbile e coberto por um mosquiteiro que, na aura espectral do quarto, mais parecia uma enorme teia de aranha. Levando em consideração o aspecto do resto da casa, nenhuma das meninas se surpreenderia se realmente o fosse. No chão, alguns poucos brinquedos espalhados eram o único indício de que algum bebê havia dormido ali algum dia.

Àquela altura, as jovens já começavam a se arrepender de estarem ali, embora nenhuma delas jamais fosse admitir.

— Quase me esqueci de que ela tinha um irmão… — Ashley comentou em voz baixa, e
Cassidy concordou com a cabeça.
— Irônico. — Ebony retrucou. — Porque ela nunca nos deixou esquecer quando estava viva.
— Lembrar é o mínimo que poderíamos fazer, depois de tudo que fizemos a ela. — Hillary
pontuou.
— Não fizemos nada. — Ebony retrucou de prontidão, embora parecesse tentar convencer a si mesma. — Além do mais, nada teria acontecido se Cassidy não tivesse tentado bancar a boa moça e a convidado para almoçar com a gente naquele começo de ano letivo.
— Então agora é minha culpa tudo o que aconteceu? — Cassidy perguntou, indignada.
Não temos culpa de nada! — Ashley interveio, irritada.

O silêncio pairou sobre elas, pesado, por um momento. Então Hillary o quebrou, falando:

— Vamos. Só sobrou um quarto para olharmos, só pode ser o dela.

De fato, agora só havia um quarto para ser aberto, e quando elas o fizeram, quase se arrependeram. A presença dela ali era tão forte que chegava a ser ligeiramente sufocante. De longe, era o cômodo mais decorado da casa.

A cama era de casal, assim como a do primeiro quarto em que olharam, com dossel e um mosquiteiro empoeirado. Um espelho de corpo inteiro ficava na mesma parede, já todo manchado e arranhado. O papel de parede com tema que um dia fora feminino e delicado agora estava escuro e envelhecido, como se estivesse lá há muito mais tempo do que realmente estava.

Na mesma parede da porta, ficava a cômoda, ainda com uma das gavetas abertas e as roupas em seu interior reviradas. Na parede oposta à janela, no lado direito do quarto, estava pendurado um enorme quadro de cortiça, com inúmeras fotos e recortes de revistas pregados por tachinhas coloridas. A única coisa realmente perturbadora naquilo tudo, além do ar de abandono, estava no teto.

Tanto Ashley quando Ebony e as outras meninas se lembravam claramente do quanto ela gostava de trabalhos manuais, assim como também se lembravam do dia em que ela chegara no colégio empolgada, mostrando fotos de um novo projeto que achara e que planejava botar em prática: um grande móbile colorido, feito inteiramente de origamis em forma de tsurus.

Pelo tempo passado desde aquele dia, ela certamente teria terminado o projeto, mas não havia nada lá. Em vez disso, do gancho pregado ao teto em que o móbile estivera, havia um pequeno pedaço de corda pendurada. Nenhuma das meninas conseguiu ver aquilo sem evitar um arrepio percorrer-lhes a espinha.

— Então foi assim mesmo. — Cassidy comentou, com um traço de choque em sua voz. Não obteve resposta. Depois do que pareceu serem alguns minutos, todas elas saíram do pequeno transe em que estavam, e voltaram a atenção para seu objetivo inicial.

Ebony sentou-se no meio do quarto, em frente a cama, e tirou a mochila das costas, para
então abri-la e revirar seu conteúdo, em busca de algo em especial. Hillary sentou-se ao seu lado, Cassidy continuava parada no mesmo lugar, olhando ao redor, e Ashley moveu-se lentamente até o criado-mudo ao lado da cama.

— Ashley. — Hillary chamou. — O que está fazendo?
— Acho que é o diário dela. — A amiga respondeu, vagamente, mostrando uma agenda
cor-de-rosa que havia achado. — Imagino que os pais não tiveram coragem de ler.

Ela sentou-se junto das amigas, ainda com o olhar perdido e o caderno em mãos. A garota buscou o olhar de cada uma das outras, como se pedindo permissão, para só então abri-lo e começar a folhear as páginas aleatoriamente, e lê-las em voz alta.


“1º de março, 2011

Querido diário,

Talvez as coisas não sejam tão ruins assim. Talvez eu possa me adaptar. Não gosto da escola nova, mas esperava que fosse pior. Não é muito diferente do que era antes. Eu continuo invisível. As pessoas passam por mim sem me notar, ou me olham torto, como se eu fosse indesejada. Isso não me incomoda, passei por isso a vida toda, mas acho que ainda tinha esperança de que as coisas pudessem mudar. Talvez ainda possam.

Hoje uma garota me convidou para que almoçasse com ela e as amigas. Achei que fosse piada, elas parecem tão populares. Acho que só fizeram isso por caridade. Nenhuma delas parece gostar de mim. Mas eu não ligo. Não vou deixar que aconteça de novo, não vou ser a menina estranha e sem amigos que sempre fui.
Essa é minha chance de mudar, e eu não vou deixá-la escapar.

Eu vou ser amiga delas.”


O silêncio pairou do quarto pelo que pareceu uma eternidade. Apesar disso, as meninas
não pareciam em pesar, só pensativas. Hillary ainda tinha o olhar meio perdido quando comentou, com a voz dura:

— Ela devia saber que não se pode forçar uma amizade. Especialmente conosco.
— Não é por almoçar conosco um dia que ela se tornaria parte do grupo. — Ebony concordou.

Cassidy tomou a agenda das mãos da Ashley, e passou algumas páginas, antes de parar em uma data qualquer.


“24 de agosto, 2011

Querido diário,

Não sei se as coisas estão melhorando. Não tenho coragem de me afastar delas, mesmo que não me sinta inclusa no grupo. E sei que elas não gostam de mim também. Cassidy tenta ser simpática, mas sinto como se ela se arrependesse por me convidar para juntar-me a elas, no começo do ano. Ashley nem mesmo tenta fingir gostar de mim. Ebony não me ignora, mas sei que ela e Hillary riem de mim pelas costas. Todos sempre fazem isso. As vezes sinto tanta raiva. Por que não posso ser normal e ter amigos? Não sei o que faço de errado. A única coisa que sei é que preciso esconder dos meus pais. Não preciso que eles tentem resolver meus problemas, não sou mais criança. Eles precisam cuidar do Andy agora.”


Ela parou de ler antes de terminar tudo o que estava escrito naquela data. Daquela vez, ninguém comentou nada. Todas sabiam que era verdade, que ela nunca fizera parte daquele grupo, e que por mais que tentasse, era motivo de piada. Elas nem mesmo tentavam esconder isso. Em vez de comentar o que quer que fosse, Ashley só falou, com a voz seca e até um pouco autoritária:

— Vamos, passe para outra data.

Cassidy assentiu, e procurou outra data qualquer.


15 de janeiro, 2012

Querido diário,

As aulas começam em poucos dias, finalmente. Passei as férias todas sozinha, e acho que não aguento mais. Ainda assim, não sei se quero voltar para a escola. Não sei de mais nada. Por um tempo, cheguei a achar que finalmente havia feito amigos. Ou ao menos, que havia chegado o mais perto disso do que nunca cheguei. Mas não tenho mais certeza.

Não ouvi nada das meninas durante todo o recesso. Talvez elas tenham viajado, talvez estejam ocupadas com suas famílias. As vezes me pergunto se sou a única assim. Obrigada a passar os dias trancada em casa, para cuidar do irmão. Amo Andy, mas não aguento mais isso.

Me sinto mal por confessar, mas sinto toda essa raiva, todo o tempo. Quero que tudo isso
acabe logo. Ouvi dizer que Ebony dá uma festa de volta às aulas todo ano. Quem sabe esse ano eu não seja convidada?”


Cassidy se interrompeu mais uma vez, olhando para as amigas com uma sobrancelha arqueada. Ashley riu baixo, em escárnio, mas foi Hillary quem falou:

— O que a fez pensar que seria convidada? — Ela disse. — Aquela garota era bizarra, não importa o quanto tentasse parecer delicada ou uma de nós.
— Além disso, eu nem fiz festa alguma aquele ano. — Ebony completou. — Tem mais alguma coisa depois disso?

Cassidy passou as páginas, mas não havia nada para ser lido.

— Não. Foi o último dia em que ela escreveu de verdade. As outras páginas só tem rabiscos e palavras desconexas. Raiva. Chega. Ódio. Raiva. Raiva. Sempre as mesmas palavras. E então, no dia 27 de outubro não tem mais nada.

Todas sabiam muito bem porque, a partir daquela data, não havia mais nada. Porque não havia mais ninguém para escrever.

O silêncio ameaçou pairar mais uma vez, mas Ebony o quebrou com um pigarro da garganta. Ela havia voltado a revirar a mochila, e retirou de lá um tabuleiro de madeira de tamanho médio.

— Então. — Ela disse, olhando para as amigas de forma desafiadora. — Vamos ver se agora ela tem algo mais a dizer.

A garota apoiou o tabuleiro no chão, de frente para si mesma e para as amigas, sentadas ao seu lado em um meio círculo. Todas agora estavam quietas, com a expectativa aumentando cada vez mais.

— Prontas? Vocês sabem como começa. — Ela disse, no que as outras concordaram com um aceno de cabeça.

Todas fecharam os olhos, e Ebony começou uma oração, com voz solene, pedindo proteção para todas elas. Nenhuma acreditava realmente que um tabuleiro ouija pudesse funcionar. Mas se já estavam lá, iriam até o fim, e não fazia sentido quebrar uma regra que, do ponto de vista delas, não era importante.

Quando a jovem acabou de falar, permaneceu ainda alguns segundos em silêncio e com os olhos fechados, assim como as outras meninas. Quando voltaram a abrir os olhos, era possível ver o brilho de excitação no olhar de cada uma, assim como a empolgação. Ebony, sentada diretamente na frente do tabuleiro, respirou fundo, e colocou o dedo em cima do ponteiro, sendo seguida por Hillary, Ashley e, por fim, Cassidy. As meninas trocaram olhares, em expectativa, mas logo todas se voltaram para Ebony.

Fora Ashley quem, aproveitando a aproximação do Halloween, falara de brincadeira para as amigas sobre o tabuleiro ouija. Mas fora Ebony quem levara a sério a ideia, além de idealizar o resto do plano e conseguir o tabuleiro, e agora as outras meninas esperavam que ela dissesse qual seria o próximo passo. Nenhuma delas sabia como começar aquilo. Por fim, a jovem falou, com a voz tremendo levemente de excitação e nervoso:

— Tem alguém aí?

Assim que falou, sentiu que a questão soava ridícula demais. Mas, afinal, nenhuma delas
havia combinado que pergunta fazer, e agora já era tarde demais. Já estavam respondendo.

Foi com um medo crescente que elas viram o ponteiro, lentamente, se mover, apontando para a opção “SIM”. Elas respiraram fundo, antes que a próxima pergunta fosse feita:

— E qual é o seu nome?

Por alguns segundos, o coração de todas elas se descompassou. No fundo, aquela era a única pergunta com que se importavam. E, de tão nervosas, quase não repararam quando o ponteiro voltou a se mexer, dessa vez em direção às letras, formando duas palavras de
modo lento. Lucy Hering.

Assim que o ponteiro parou em cima da última letra, o clima no quarto pareceu muito mais pesado do que já estava quando elas entraram lá. De repente, nenhuma delas sabia o que fazer. Por mais que não acreditassem serem culpadas, um sentimento próximo da culpa apertava suas gargantas.

Hillary aproveitou alguns segundos de coragem para perguntar, com tom de voz
zombeteiro:

— Para onde você foi depois de morrer?

Nada aconteceu. As meninas já estavam começando a pensar que a pergunta não era
válida, mas o ponteiro começou a se mover de repente. L-u-g-a-r n-e-n-h-u-m.

O sangue de cada uma delas gelou. Por fim, Hillary falou de novo, mas sua voz agora estava ligeiramente ríspida.

— Quem de vocês moveu o ponteiro? Isso não tem graça, gente!
— Não fui eu. — Cassidy disse, no que Ashley e Ebony concordaram. Assim como Hillary, todas elas tinham esperança de que aquilo não passasse de uma brincadeira sem graça.

Mas, no fundo, todas elas sabiam que não era brincadeira, e que se algo estava movendo a
tábua, não se tratava de nenhum fenômeno natural.

Ashley tentava, a todo custo, manter-se corajosa diante da situação. Sua voz tremeu levemente quando ela voltou a falar, mas não era possível saber se o tremor era causado pela raiva ou pelo medo:

— O que é isso, algum tipo de vingança? — Nada aconteceu. — Bem, nós não temos
medo!

O ar parecia mais pesado, o silêncio era perturbador, e a adrenalina corria no interior de cada uma delas, fazendo-as esperar o que elas nem mesmo sabiam se viria. De algum jeito, a calmaria apenas as deixou mais nervosas do que já estavam, e Ashley voltou falar,
com a voz um oitavo mais alta:

— Não temos medo de você, e nem nunca tivemos! A única coisa que já sentimos por você foi pena!

A jovem mal tinha acabado de falar a última frase quando um baque surdo veio do fim do corredor. Uma porta – a julgar pela distância do som, a dos pais de Lucy – bateu, fazendo as garotas se sobressaltarem.

— Está tudo bem. — Ebony falou, tentando se convencer mais do que às amigas. — Deve ter sido o vento.

De repente, porém, nenhuma delas sentia mais tanta vontade de continuar com aquele jogo estúpido. Elas se entreolharam, como que se perguntando se deveriam desistir enquanto tinham tempo, mas o orgulho no olhar de cada uma falou mais alto. Iriam até o fim.

— O que você quer? — Cassidy perguntou. No fundo, ela já sabia a resposta. Todas sabiam, mas, mesmo assim, viram o ponteiro se mover, letra por letra, até formar uma única palavra. Vingança.

— Por quê? Nunca te fizemos mal. — Ebony falou.

Elas aguardaram a resposta, temerosas. Talvez nem mesmo a tivessem. Talvez a pergunta fosse muito complexa para ser respondida através de um tabuleiro. Talvez tenha sido por isso que o ponteiro continuou parado, mas outra coisa tenha se movido.

Se tratava apenas de uma caixinha de surpresa à manivela, e provavelmente tinha pertencido a Andy ou a uma Lucy muito pequena, mas tinha passado despercebida até então. A pequena caixa de madeira tombou para frente, sem razão aparente, fazendo com que sua tampa abrisse e o brinquedo no interior, um palhaço, saltasse para fora.

As meninas viraram-se na direção do barulho, por reflexo, e o coração de cada uma delas acelerou consideravelmente. O vento poderia ter fechado a porta no fim do corredor, mas ali não havia vento algum, e não havia motivos para que o brinquedo caísse naquele momento. Permanecia tão intocado quanto estava quando elas entraram na casa, e nenhuma delas havia girado a manivela.

— O que foi isso? — Hillary perguntou aos sussurros.
— Você viu o que foi. — Cassidy respondeu, tão baixo quanto a amiga. — Viu tão bem quanto eu.

Nenhuma delas sabia com certeza se o ar estava de fato mais gelado e pesado ou se elas que não estavam conseguindo respirar direito. Mas todas estavam bem conscientes do frio que subia pela espinha e do suor frio que corria pelas têmporas e nuca.

Àquele ponto, não precisavam mais olhar umas para as outras para saberem que estavam com medo, e tampouco conseguiam esconder o sentimento, que as paralisava o suficiente para impedir que tirassem o dedo de cima do ponteiro do tabuleiro e que fazia com que elas começassem a sentir os efeitos da paranoia. Não sabiam mais os limites da linha fina que separa o real do imaginário.

Quando entraram no quarto que um dia tinha pertencido a Lucy, as meninas acenderam a lâmpada, embora ela não estivesse funcionando muito bem, pelo período que passara apagada. Todas tinham plena consciência disso, mas nenhuma chegou a considerar a hipótese de ser um fenômeno natural no momento em que a luz diminuiu consideravelmente, piscando algumas poucas vezes.

Embora todas tentassem esconder o pânico que as tomava, não estavam tendo muito sucesso. Mesmo Ashley, que tentava se mostrar corajosa, fazia o possível para esconder o tremor nas mãos. Ebony tinha o olhar inquieto, tentando capturar o que acontecia no quarto todo ao mesmo tempo. Cassidy tinha a respiração tão fraca que, por vezes, parecia nem mesmo respirar, e Hillary parecia à beira das lágrimas.

E então, todas ouviram. Primeiro em volume baixo para depois aumentar gradativamente, como se estivesse se aproximando devagar, pé ante pé. O som de crianças rindo chegou aos ouvidos delas, fazendo seus corações baterem ainda mais descompassados. Uma lágrima solitária já corria pela bochecha de Hillary, mas ela nem ao menos parecia ter percebido quando perguntou:

— Isso são só as crianças na rua, certo? — A voz da garota saiu estrangulada, mas firme o suficiente para que as outras a entendessem.
— Eu gostaria de acreditar nisso. — Ebony respondeu, nervosa.
— Por que está fazendo isso? — Ashley exigiu, com a raiva quase igualada ao medo em sua voz.

Por um instante, elas tiveram a esperança de que tudo estivesse acabado. O quarto pareceu mais calmo, e o eco das crianças rindo diminuiu até sumir. Logo todas as esperanças caíram por terra, ao sentir o tabuleiro se mover, letra por letra, até formar uma nova palavra. Ódio. O indicador se movia para a última letra, para só então recomeçar a palavra outra vez, em um ciclo vicioso.

Durante alguns segundos, elas chegaram a sentir falta das risadas. O silêncio que agora tomava o ambiente era, de longe, muito mais perturbador. Quase como mágica, o silêncio foi quebrado quase no mesmo instante, fazendo-as se sobressaltar.

Cassidy tirou o celular do bolso de trás da calça, sem conseguir evitar um traço de medo no olhar. O nome de Josh, seu namorado, estava no visor, mas isso não serviu para inspirar confiança o suficiente na moça para que ela atendesse a ligação, e um olhar rápido para as amigas confirmou que elas também não atenderiam. Não confiavam em nada àquela altura do campeonato. O telefone tocou até cair na caixa de mensagens.

As risadas infantis voltaram a ecoar, ao longe. As meninas respiravam fundo, tentando manter a calma, mas a cada segundo se sentiam mais perto de um ataque cardíaco. Aquele tique-taque já estava ali antes? Elas não se lembravam se o despertador esquecido em cima da mesa de cabeceira estava funcionando quando elas chegaram. Provavelmente
não, mas agora estava. Elas mal haviam percebido o som baixo que o objeto fazia, quando ele disparou o alarme, fazendo-as dar um pequeno pulo no lugar onde estavam.

Elas já sentiam como se fossem feitas de gelo, ao mesmo tempo em que sentiam frio e tremiam ao menor toque do ar em suas peles. O celular de Cassidy tocou de novo, e ela levantou uma mão trêmula para atendê-lo e colocá-lo no viva-voz, sem porém dizer nada.

— Cassie? — A voz de Josh soou metálica. — Está tudo bem? Por que não atendeu antes?
— Não… não posso falar agora, Josh. — Ela tentou falar alto para que o namorado ouvisse, mas sua voz saiu rouca e trêmula.
— Cassie, o que está acontecendo? — Ele voltou a perguntar, preocupado. — Vocês foram,
não é? Até a casa de Lucy!

Cassidy se amaldiçoou por ter contado ao namorado do plano de ir com as amigas até a casa abandonada para jogar com um tabuleiro ouija. Não podia evitar que, no fundo de sua mente, sentisse um certo alívio por mais alguém saber onde elas estavam, caso algo acontecesse. Mas a garota simplesmente não estava com o emocional bom o suficiente para conversar com o namorado naquele momento.

— Desculpe, Josh. Tenho que desligar. — Ela disse. Com a mão trêmula, porém, a garota precisou de algumas tentativas antes de acertar o botão de desligar, tirando o aparelho do
viva-voz antes de conseguir.

No mesmo instante, um antigo vaso de porcelana que decorava a cômoda se espatifou no chão, partindo-se em mil pedacinhos e tirando o fôlego das meninas. Hillary chorava cada vez mais, Ebony parecia estar se esforçando para não fazer o mesmo, Cassidy tremia descontroladamente e Ashley parecia à beira de um ataque de nervos.

— Pare com isso! — Ashley gritou. — Pare de estragar mais as nossas vidas! Já nos sentimos culpadas o suficiente, ok? PARE COM ISSO!

A garota levou as mãos até a cabeça, e emendou a última frase com um grito, ao mesmo tempo em que o espelho manchado rachou completamente, antes que seus cacos caíssem pelo chão, deixando a moldura e alguns cacos presos na mesma ainda intactos na parede, como se alguma coisa o tivesse atingido. Exceto que não havia nada nem ninguém ali para atingi-lo.

Se antes as garotas gritaram de medo, agora gritavam de puro pavor, e lágrimas de desespero escorriam em meio aos berros.

— Pare com isso, pare! — Ebony implorava, soluçando. Hillary chorava até mais que a amiga, não tendo mais forças para falar.
— Cassie, o que está acontecendo? — A voz de Josh voltou a ecoar do telefone. O garoto se mantivera mudo, provavelmente tentando ouvir o que estava acontecendo do outro lado, mas agora estava claro que Cassidy não havia desligado direito o aparelho, devido ao nervoso que sentia. — Cassie, está me ouvindo? Estou aí perto, vou te buscar!

Cassidy até tentou pegar o celular, largado de qualquer jeito no chão, para responder Josh. Se para pedir para que ele se apressasse ou para dizer que não se arriscasse a vir, nem ela mesma sabia. Mas ela mal havia pego o aparelho quando uma ventania repentina a fez perder o equilíbrio, bem como as outras garotas, e o celular caiu no chão, deslizando para debaixo da cama.

Elas não faziam ideia de onde vinha o vento, mas a julgar tudo o que havia acontecido até então, estavam assustadas demais para querer saber. A porta se fechou com a pressão do ar, deixando-as trancadas no quarto, mas elas não conseguiam enxergar mais nada, com os cabelos batendo nos rostos e a poeira do quarto abandonado há dois anos entrando em seus olhos. Se fosse preciso, teriam que confiar em seus instintos, audição e tato.

Depois do que pareceu uma eternidade, o som de algo batendo em madeira chegou aos ouvidos delas, abafado e longínquo, sendo seguido de um estrondo muito mais alto. Aquele barulho que parecia cada vez mais perto de onde elas estavam era de passos? Nenhuma delas confiava em sua própria mente mais.

Então, como se apenas para confirmar se elas estavam ou não loucas, ouviram batidas na porta, insistentes e firmes.

— Cassidy! — A voz masculina chamou. — Cassidy, vocês estão aí? Vamos, responda!
— JOSH! — Cassidy gritou em resposta. O alívio que ela sentiu ao ouvir a voz do namorado era indescritível, e aparentemente as outras meninas sentiam o mesmo, uma vez que também gritaram, pedindo por socorro.
— Não estou conseguindo abrir a porta, vou arrombar! — Ele avisou, logo antes de mais um baque surdo ser ouvido pelas garotas, e a porta tremer. O jovem precisou de mais algumas tentativas antes da porta finalmente ceder.

No momento em que a madeira tombou e ele entrou no quarto, tudo parou. Tudo pareceu quase intocado, com exceção das cortinas flutuando levemente, e os cacos do espelho e do vaso no chão.

As garotas estavam encolhidas, no chão, assustadas e exaustas. Levou alguns segundos para que elas entendessem que havia acabado, e quando a ficha caiu, elas levantaram,
trêmulas. Cassidy correu para os braços de Josh e as outras olharam em volta, tentando entender o que acontecera.

— Vamos embora daqui logo, pelo amor de Deus. — Ebony chamou, vacilante, indo em
direção ao vão em que até então tinha estado a porta.

Hillary acenou positivamente, tentando se recompor. Ashley, antes de ir, virou-se uma
última vez para o quarto, furiosa:

— Era isso o que você queria, não era? Nos assustar! — Ela perguntou para o nada. — Está feliz? Já cumpriu sua vingancinha, ou prefere continuar com esse jogo ridículo?

Todos os presentes prenderam a respiração, nervosos, e mesmo a própria Ashley parecia ansiosa.

— Vamos, diga! Podemos ir embora? — Ela questionou mais uma vez, com a voz regada de escárnio.

Nada aconteceu, e ela chutou a tábua ouija com toda a força, mandando o jogo para o outro lado do quarto. Assim que o objeto atingiu a parede, ela se virou de volta para a saída, e seguiu junto com os outros, pronta para ir embora. Agora que tudo estava, enfim, terminado, eles poderiam seguir do jeito que seguiam antes: vivendo uma vida fútil, aproveitando o resto da noite de Halloween, e mantendo distância de Lucy Hering e sua casa.

Nenhum deles se virou para ver o tabuleiro jogado de qualquer jeito, com o ponteiro
mostrando incessantemente a mesma palavra: “não”.

sábado, novembro 01, 2014

Shoot Love


A mulher fechava o sutiã, virada de costas para a cama. A calça já estava vestida, embora o zíper e o botão ainda estivessem abertos. O cabelo bagunçado insinuava que ela havia acabado de acordar, mas a face afogueada e o olhar afobado entregavam o que ela realmente estava fazendo há apenas alguns minutos.

Ela deu alguns passos para a frente, vencendo a distância entre a cama e a enorme janela do quarto, todo decorado de modo minimalista, em tons de preto, branco e prateado. Com um movimento rápido, ela afastou as cortinas, olhando para o horizonte colorido de laranja e a luz do sol da tarde invadiu o quarto. Então, desviou o olhar para baixo, sabendo que ninguém poderia vê-la de roupas íntimas. Não da altura em que estava, de onde os carros que passavam na rua movimentada pareciam de brinquedo.

— Bom. O sol ainda não se pôs. — Ela comentou, de modo vago. — Não vou me atrasar para o jantar com Steven.

O comentário foi aleatório, mas ela só se tocou do impacto que poderia causar depois que já havia falado. O homem, ainda deitado na cama, esfregou o rosto, cansado.

— Isso não pode continuar assim, Donna.
— E o que quer que façamos, Michael? — Ela retrucou, exasperada. — Já conversamos sobre isso! Não posso simplesmente acabar tudo com Steven, não depois de cinco anos de relacionamento sério.

Michael não respondeu, mas ela percebeu a linha do maxilar dele tornando-se mais rígida, e soube que a resposta não o agradou. Ela emendou, com voz amorosa e ligeiramente triste:

— Mas também não posso perder você.

Ele permaneceu em silêncio, mas levantou-se, ainda de cueca, e se dirigiu ao banheiro da suíte. No caminho, recolheu a blusa de Donna, jogada de qualquer jeito no chão, e atirou na direção dela.

Fez o possível para se demorar no banheiro, embora só fosse lavar o rosto. Aquilo não estava certo, e precisava acabar. Mas seria muito mais fácil se não estivesse tão ligado a Donna, ele pensou, esfregando os olhos e encarando seu próprio reflexo no espelho.

Michael nunca achou que fosse do tipo capaz de trair alguém. Ainda assim, se encontrava naquela situação revoltante até mesmo para ele. Ainda que não conhecesse Steven – noivo e, dali a alguns meses, marido de Donna – sentia como se estivesse traindo-o tanto quanto a noiva infiel que ele tinha.

Em sua defesa, podia afirmar que tanto ele quanto Donna tentaram evitar o relacionamento proibido a todo custo. Mas as defesas são valeriam de nada, ele sabia. Não importava o quanto tivessem resistido, o fato é que cederam.

Ele tinha plena consciência de que estava no banheiro há apenas alguns minutos, mas o peso em sua consciência fazia parecer horas. Quando voltou ao quarto, Donna já estava inteiramente vestida, e arrumando algo em sua bolsa, apoiada na cama desarrumada.

A mulher levantou-se e virou em sua direção, com um sorriso afetado. Ele podia perceber no olhar dela que estava tão perdida quanto ele próprio. Já haviam conversado sobre a situação dos dois milhares de vezes, mas a cada vez que o faziam, pareciam prender-se um ao outro mais do que já estavam presos antes.

Michael não se moveu, permanecendo encostado no batente da porta do banheiro, e Donna o encarou por alguns instantes, parecendo sem saber o que fazer. Por mais que estivesse aparentemente calma, era possível ver em seu olhar a preocupação e a culpa. Tomando uma decisão silenciosa, enfim, ela moveu-se até o amante com passos rápidos, depositando um beijo no canto de sua boca, e então se dirigiu até a sala do apartamento, murmurando uma despedida apressada.

Pouco depois ele ouviu a porta de entrada fechando, e o clique baixinho da fechadura. Suspirando alto, o homem sentou na beira da cama, esfregando o rosto de forma cansada, e então jogando-se para trás, até estar deitado.

Aquilo estava acabando com ele. E com Donna também, ele tinha certeza, por mais que ela tentasse se mostrar indiferente ao assunto. Isso, claro, quando se permitia sair do pequeno e quase perfeito mundo de vidro que ambos criaram e falar sobre a realidade muito mais repugnante da qual fugiam.

Paradoxalmente, Michael jamais poderia se dizer arrependido da relação que mantinha com Donna, mas amaldiçoava o dia em que se conheceram. Não parecia ter se passado mais do que dois ou três dias desde então, mas ele sabia que já estavam juntos há quase seis meses. Ainda assim, ele se lembrava perfeitamente de quando a conheceu em um bar, de como tudo não parecia passar de uma diversão de uma noite regada a bebida, e de como, no dia seguinte, nenhum dos dois resistiu em ligar, querendo mais um encontro proibido.

Os encontros, pouco a pouco, se tornaram cada vez mais frequentes, ao ponto dele arriscar dizer que conhecia o corpo de Donna tão bem quanto o noivo da mulher. E, apesar de o tempo que passavam juntos ser principalmente focado no contato físico, por várias vezes eles discutiram que atitude tomariam em relação ao seu envolvimento.

Por mais que Donna não fosse capaz de usar essa palavra para se descrever, Michael sabia que ela era romântica. Não teria coragem de terminar uma relação de anos com o noivo, especialmente sabendo o quanto ele a amava. Michael, por sua vez, não teria coragem de deixá-la ir. Não sabia como nem porquê, mas estava preso a ela como jamais esteve preso a algo ou alguém antes. E foi assim, mantendo as duas relações, que ela matou o amor, pouco a pouco.

O problema de Donna talvez fosse valorizar demais o amor. Michael sabia que ela o amava, e ele a amava com mesma intensidade, se duvidar até mais. Mas ela também amava o noivo, ainda que não da forma que deveria. E valorizava demais o amor que Steven tinha por ela, o suficiente para que não tivesse coragem de acabar a relação.

E se por um lado o pecado de Donna era compreensível, o dele era inaceitável. Puro egoismo, ele sabia. Estava destruindo, por puro capricho, um namoro de anos. Sentia-se como duas almas diferentes habitando o mesmo corpo. Uma queria desesperadamente fazer a coisa certa, abandonar aquele relacionamento caótico antes que causasse mais estragos. A outra, porém, ignorava tudo isso em nome de poucas horas ao lado da mulher que queria mais que tudo.

Desistindo de apenas ficar na cama remoendo o que no momento não podia ser mudado, Michael levantou-se, e estava a meio caminho da janela quando pisou em algo que não havia reparado estar caído no tapete. O homem não pode evitar um sorriso irônico ao abaixar-se para pegar o pequeno objeto. O anel de noivado de Donna.

Ele nunca havia entendido o porquê da mania dela de tirá-lo em todos os seus encontros, uma vez que ambos estavam bem conscientes do status de relacionamento da moça. Mas, de qualquer forma, ela o tirava, e aparentemente naquele dia havia deixado cair de sua bolsa, quando se arrumava para ir embora. Ela deveria ter tido mais cuidado. As chances de que Steven não percebesse a ausência da joia eram quase nulas, e Michael não fazia ideia do que Donna faria para se justificar ou redimir. Ou talvez soubesse muito bem.

Balançando a cabeça e abafando um risinho de escárnio, ele guardou o anel na gaveta do criado-mudo, onde lembraria de procurar e devolver para a dona assim que ela viesse vê-lo mais uma vez. Michael sentia-se horrível por pensar naquilo, mas não podia evitar uma pequena pontada de esperança no coração de que, da próxima vez que Donna viesse, não precisasse mais do anel, e nem de sigilo nenhum.

Afinal de contas, apenas naquele momento, a parte dele que não dava a mínima importância para o quão errado era aquilo tudo estava no controle, e aquela mesma parte era tão fraca quanto determinada. Ao menos, era determinada o suficiente para não deixá-la ir, do mesmo modo que ela não o abandonaria. Juntos, eram tão fortes quanto dependentes um do outro. Não poderiam se deixar ir embora, não quando ficavam tão perdidos, quando separados. Não quando juraram, inconscientemente, estarem juntos não importasse o custo. Não quando eram escravos do amor que matavam pouco a pouco.

segunda-feira, junho 23, 2014

Come little children


She sings before sleep
Her own lullaby
She sings with her whole heart
So she won't cry
Sing it, little princess
All the monsters still hide
Don't sing too loud
And you'll can dream at night

He cries before sleep
Every single day
Nobody never sings for him
He can't forget his fate
Soldiers shouldn't cry, little boy
I know you can be so brave
I'm so sorry
You will never escape

She lives in a fairytale
And dances all the songs
While he lives in a battle
In silence and all alone
She asked him:
“Are you made of stone?”
He finally said:
“I don't wanna go home.”

quarta-feira, junho 04, 2014

Diário de Vanessa


O dia clareou
O sorriso falso voltaria
O pensamento, porém, não mudou
Ainda estaria escuro

Se não fosse agora

Pelas palavras que escreveria
Com tristeza e comoção
No diário de Vanessa

Ela não aguentava mais
Embora ainda fosse forte
E a teimosia fosse sua marca
Precisaria de alguém

Se não fosse agora

Pelas palavras escritas
Com capricho e devoção
No diário de Vanessa

Passaram-se dias
Parou de sorrir
Precisava descansar
O cansaço venceria

Se não fosse agora

Pelas palavras gravadas
Com rancor e frustração
No diário de Vanessa

Ninguém a via
Não saia mais de casa
Nada a motivava
O tempo passaria mais rápido

Se não fosse agora

Pelas palavras arrastadas
Com cansaço e desorganização
No diário de Vanessa

Talvez ele pudesse ajudar
Tinha um bom coração
Tudo parecia mais simples
Ela até saberia pedir ajuda

Se não fosse agora

Pelas palavras escassas
Com tédio e afetação
No diário de Vanessa

Calou-se a voz
Chegou a calmaria
Chorariam a tristeza e o choque
Em breve seria esquecida

Se não fosse agora

Pelas palavras imortalizadas
Com sentimentos e redenção
No diário de Vanessa

Ele queria ter ajudado
Esperava tê-la conhecido
Esperou demais
Jamais a veria de novo

Se não fosse agora

Pelas palavras que leria
Com saudade e devoção
No diário de Vanessa

A raiva contida
A tristeza sufocante
A avalanche de sentimentos
(dela)
Que ele jamais entenderia

Se não fosse agora

Pelas palavras rabiscadas
Com pressa e confusão
Um adeus à depressão
No diário de Vanessa

sábado, maio 31, 2014

Das coisas que eu ainda odeio em você


Odeio esse seu sorriso torto
E como ele nunca é pra mim
Também confesso meu desconforto
Quando duvido dos motivos dele existir

Detesto seu olhar perdido
Simplesmente por querer encontrá-lo
E saber tudo que podia ser sentido
Tanto por mim, quanto por ti

Odeio essa sua indecisão
Porque de paradoxo já basta eu
Diga-me logo, sim ou não?
Cansei de não saber

Odeio tudo isso e muito mais
No fundo, amo tanto quanto odeio
(só não admitirei jamais!)
Ao menos, não em voz alta

Das coisas que eu odiava em você
Odeio em mim também
Acho que não é clichê
Mas nem quero mais saber

Parte de mim ainda tenta entender
Repasso tudo o que houve
Em vez de tentar esquecer
Quanta estupidez!

Não sei sobre o futuro
E já tentei esquecer o passado
Mas não consegui, eu juro
Só tenho uma certeza

Ainda não teve um final
Não sei como ele será
E nem qual seria o ideal
Cansei de adivinhar, um dia saberei

Assim como ouvi dizer,
Uma vez em uma canção,
“Então vamos viver
E um dia a gente se encontra”

domingo, maio 18, 2014

Querida Raine



Dessa vez não me demorarei muito, ou ao menos não pretendo. Nem mesmo sei se chegarei a te enviar essa carta, um dia. Ao menos no momento, não é nada mais do que um desabafo meu. Você sabe que falar sozinha nunca me pareceu uma declaração de loucura, mas isso não está mais funcionando comigo. Enquanto falo comigo mesma, meus pensamentos apenas se embolam ainda mais.

Sabe, sinto que as coisas continuam mudando. E rápido. Mesmo assim, quando paro e olho ao meu redor, tudo parece desesperadoramente igual. Isso, na verdade, acho que só prova o quanto mudei; desde quando mudanças me parecem necessárias, e não assustadoras?

Cheguei a um ponto em que não sei mais o que me faz bem. Gostaria de falar mais contigo, mas nossa facilidade para manter uma conversa parece estar se esvaindo pouco a pouco, bem como com Sophie. É claro que isso não quer dizer que gosto de vocês com menos intensidade do que gostava antes, mas é um fato perturbador. Acho que nem mesmo te contei de Charlie, não é mesmo? Só prova o quanto nos afastamos. Bem, não importa, eu não deveria mais falar sobre ele ou tudo que o envolve.

Lembra-se de como costumávamos olhar o céu, durante a noite? Era minha terapia favorita, junto com as cores. Hoje em dia, porém, não funciona tão bem assim, e te juro, me parte o coração admitir isso. É claro que nem tudo mudou completamente. Sempre terei as estrelas, e as estrelas sempre terão a mim. Mas não é como antes.

E, em meio às minhas preocupações sobre mudanças – ou a ausência delas –, ainda me pergunto se sou anil. Pode rir, e eu também riria, se para mim não fosse tão trágico. Mas, entenda: ao me perguntar isso, me pergunto se eu mesma mudei tanto assim. Quero dizer, tudo isso são apenas mudanças bobas ou minha essência também mudou? É difícil dizer tudo que ficou para trás. Acho que, aos poucos, nos esquecemos dos detalhes do que tínhamos ou de quem éramos.

Está vendo? Fiz mais uma vez. Disse que não ia me demorar muito, mas aqui estou, com outra carta mais longa que o necessário. Pelo menos isso tenho certeza de que não mudou. Desculpe-me, acho que vou parar por aqui. Inclusive, algo que reparei mudar em mim: eu não sinto. Não como antes. Ainda não decidi se isso é bom, mas ao passo em que antigamente eu sentia demais, hoje sinto de menos, durante a maior parte do tempo. É claro que isso talvez seja só influencia de Kallisto, afinal, você sabe que eu sempre acreditei que as manias de outras pessoas são tão contagiosas quanto doenças. Mas acho que você não poderia concordar ou descordar, uma vez que também não conhece Kallisto…

Ainda não me decidi se lhe mandarei ou não esta carta mas, por via das dúvidas: é bom falar contigo de novo, e espero que não se importe com o desabafo mal contido e mal explicado. Quem sabe podemos conversar melhor qualquer dia desses? Continuo sentindo sua falta. E, por favor, cuide-se, sim? Eu cuidaria de você, se pudesse, mas no momento mal posso cuidar de mim.


Daquela que ainda não se adaptou às mudanças,

Lyra

quarta-feira, maio 14, 2014

Sobre a morte que nos separa


— É engraçado como as coisas mudam em tão pouco tempo, né, irmão? — O garoto comentou, sozinho, e em voz baixa. — Há alguns meses, tudo era tão diferente. Uma pena que as coisas não deram certo.

Ele parou, esperando uma resposta que não veio. Tudo estava no mais perfeito silêncio, e se não fosse por ele e pelo ritmo constante de sua respiração, tudo estaria como se congelado no tempo. Nem mesmo o vento – no momento inexistente – movia as folhas das várias árvores ali.

O jovem não devia ter mais de 17 anos, mas algo em sua expressão indicava que ele entendesse da vida como um adulto. Talvez ele só tivesse a sorte de parecer mais maduro do que era, ou talvez a vida tivesse o obrigado a ver as coisas de forma mais realista. Uma pena que nem sempre aprendemos a viver no tempo certo. Às vezes, aprendemos mais rápido do que deveríamos.

— Sinto sua falta. — Ele confessou, em voz baixa.
— Eu sinto, também. — A voz feminina ecoou ali perto, tão baixa quanto um sussurro, mas, mesmo assim, ele se sobressaltou.

A menina estava encostada numa das árvores mais altas por ali, perto de onde ele próprio estava. Ele não a viu chegar, e logo entendeu porquê. Ela se moveu em silêncio, provavelmente da mesma forma que havia chegado ali, e se aproximou.

Nenhum dos dois disse mais nada. Ele, num silêncio constrangedor. Ela, num silêncio calmo. Ambos, porém, doloridos. A menina sentou-se ao lado do jovem, abraçando as próprias pernas, e com a cabeça apoiada nos joelhos.

— Era amiga dele, também? — O garoto perguntou, timidamente. Ele a olhou pelo canto dos olhos, mas ela nem mesmo se moveu.
— Prima.
— Sinto muito. — Ele voltou a falar, e permaneceram um momento em silêncio. — Quer que eu a deixe sozinha?

Ela o olhou. Seu rosto não tinha emoção alguma, com exceção de um traço de curiosidade no olhar. Por algum motivo, ele se sentiu incomodado com a avaliação rápida que ela fazia.

— Não é como se ele pudesse responder alguma tentativa de conversa.

Ela não falou mais nada, mas manteve o contato visual. O jovem a olhou ainda mais sem graça do que já estava, e não sustentou o olhar da moça muito tempo. Ele voltou a olhar o túmulo de mármore na frente da qual estavam sentados, e em breve a menina fez o mesmo.

— Foi você quem as trouxe? — Ela perguntou, indicando com a cabeça o buquê de flores do campo pousado ali em cima.
— Sim. Um bocado afeminado, não é? — Ele respondeu, com uma risada anasalada e voz um tanto quanto amarga.
— Não. São bonitas, mas inúteis. — A menina opinou, antes de completar com a voz mais baixa: — Ele não pode mais sentir o perfume que elas exalam.

O jovem considerou por um momento, e o silêncio entre eles voltou a reinar. Reparando bem, ele podia ver a tristeza escondida nos olhos dela, mesmo com a atitude serena. Não a forçaria a falar, apesar de tudo. Sabia como ela estava se sentindo, apesar do fato de que essa era a única coisa que sabia a seu respeito.


— Preciso ir. — Ele comentou ao olhar o relógio de pulso, no fim de longos minutos em que não falaram mais nada. — Se demorar mais um pouco, vou me atrasar para buscar minha irmã mais nova.

A menina não o olhou enquanto o garoto se levantava, apenas acenou positivamente com a cabeça, e ele se sentiu um tanto quanto idiota por dar explicações a uma desconhecida.

— Fique bem. Ou ao menos tente. — Ele se arriscou a dizer. — Não acho que Logan gostaria de ver qualquer um que o conhecesse triste.

A jovem acenou minimamente com a cabeça, e ele deu as costas, em direção aos portões de ferro do cemitério. Achou ter visto os olhos dela ligeiramente úmidos, mas se ela precisasse desabafar de algum modo, o melhor seria que fosse sozinha, e não na presença de um estranho.

— Obrigada.

Ele a ouviu sussurrar enquanto se afastava, mas não voltou. De qualquer forma, não saberia dizer se ela agradecia a ele, ou se estava se dirigindo ao túmulo do primo, jovem demais, e que nem mesmo teve a chance de aprender a viver.

sábado, fevereiro 08, 2014

Como todos os dias de um passado distante


As calçadas movimentadas pareciam vazias enquanto ele andava, olhando para seus próprios pés. Não porque tinha a importância de um rei ou algum soberano e as pessoas abriam caminho para sua passagem, e sim porque ele não se importava com quem estava ao seu redor. Era quase impossível contar em quanta gente ele tinha esbarrado, e recebera um xingamento em resposta, mas ele não ligava, e mal ouvia o que lhe era dito ou sentia os empurrões que recebia. Ele simplesmente andava, sem ligar para mais nada.

Era irônico como tudo mudava de acordo com seu humor, ainda que talvez seja assim com todos. Quando se está feliz, o mundo parece lhe sorrir de volta, mas quando se está de mau humor, tudo que se recebe em troca são xingamentos e esbarrões numa calçada cheia em uma cidade qualquer.

No bolso de seu sobretudo, o papel e a caneta pesavam mais do que pesaria uma arma. Com dificuldade, saiu do meio da pequena multidão que circulava na rua, e entrou em um café. Havia frequentado aquele local poucas vezes, e agora que voltara depois de tanto tempo, a nostalgia lhe atingia como um vento cortante do inverno.

Ainda não tinha se acostumado a não vê-la sentada ali, na mesma mesa de sempre. Se fechasse os olhos, ou ao menos se concentrasse um pouco mais, sabia que poderia enxergá-la, com os cabelos acaju soltos sobre os ombros, e os óculos com armação azul e quadrada refletindo a tela do notebook.

Pediu um cappuccino, com dose extra de açúcar, e mesmo depois da bebida já estar à sua frente, juntamente do papel e da caneta, ele parecia esperar algo que jamais chegaria. Esfregou os olhos, cansados. Sentia-a tão perto de si que quase doía.

Depois de respirar fundo, começou a escrever, quase entrando numa espécie de transe. Escrevia sobre tudo que pudesse pensar a respeito dela, mesmo aquilo que nunca diria se estivessem frente a frente. E, bem, talvez se o tivesse dito, não precisaria escrever agora, porque talvez, se tivesse dito tudo o que pensava, ela não tivesse ido embora.

O tempo parecia ter corrido mais depressa que o normal enquanto ele estava preso em seu mundo particular de memórias, e quando finalmente terminou de escrever, recostou-se na cadeira, suspirando.  Ao reparar no copo ainda intocado de cappuccino, riu suavemente,  percebendo como tudo aquilo era irônico. Havia acabado ali, bem onde sua história havia começado, onde havia conhecido-a. Justo ela, que sempre teve mais medo de mudanças do que ele sempre teria.

Ah, se soubesse que, se a ajudasse a superar os medos, ela fugiria dele, assim, sem pena! Ele confessaria, sem um pingo de pena, que não a ajudaria.

Uma vez lhe disseram que cílios, estrelas cadentes e velas de aniversário realizavam pedidos, bem como cartas atiradas ao vento, e ele acreditara, como também acreditara que o mundo era um lugar bom. Há muito ele deixara de acreditar em tudo isso, e até se acostumou a viver numa versão mais escura do mundo que criara pra si mesmo. O problema é que agora chegara ao ponto de voltar a acreditar em tudo isso, como última esperança que a fizesse voltar.

Mas como poderia atirar uma carta ao vento com a chuva que caía lá fora? Não poderia. Talvez seja um sinal de que não devo fazer isso, ele pensou, olhando os garranchos escritos rapidamente no papel. Talvez, só talvez, ele devesse seguir seus próprios conselhos e vencer o medo que um dia também fora dela. Tudo que precisava fazer era aceitar que ela tinha ido embora. Rotina não existia mais no vocabulário dela, e precisava voltar a sumir do dele. Nada acontece duas vezes da mesma maneira, nada voltaria a ser do mesmo jeito como todos os dias de um passado distante.

quinta-feira, fevereiro 06, 2014

Aprendiz da solidão


Os primeiros raios de sol passavam pela janela do quarto, e iluminavam de forma suave o rosto do jovem adormecido. Nora mantinha-se afastada da luz, sentada numa poltrona no canto do quarto, com os pés sobre o assento e abraçada aos próprios joelhos. Victor acordaria logo.

Ela suspirou de cansaço, embora não tivesse sono. Passara a noite toda acordada, mas ainda assim não sentia um pingo de sono que fosse. Tudo bem, era certo que nenhum dos dois tinha ido dormir cedo, mas do mesmo jeito, as horas de sono perdidas não foram suficientes para fazê-la chegar a alguma conclusão.

Aquilo estava acabando com ela. Estava acostumada a contar com a ajuda de Victor para resolver qualquer problema que fosse, mas o que deveria fazer uma vez que o problema era o próprio Victor? Ela nem mesmo havia percebido quando as coisas começaram a mudar e se complicar tanto, mas aqui estava ela.

A verdade era que, enquanto muitos diziam estar entre a cruz e a espada quando numa situação difícil, Nora sabia que estava entre duas espadas com lâminas afiadas; não importa o movimento que fizesse, sairia machucada.

Na primeira das opções, machucaria Victor depois de tantas juras de que ficariam juntos, e magoá-lo doía tanto nela quanto nele, apesar de tudo. Na segunda opção, ele estaria feliz, mas ela não sabia se poderia viver ignorando seus próprios sentimentos. Mas, de qualquer forma, já estava detestando a si mesma naquele momento.

Nunca se sentira tão sozinha na presença de outra pessoa, ainda mais de alguém que outrora a conhecia tão bem quanto ela mesma. Nora não sabia quando as coisas tinham mudado, mas ela simplesmente não podia mais suportar aquilo. Não podia passar o resto de seus dias fingindo que tudo estava bem, mas como poderia criar coragem para falar tudo o que pensava?

Enquanto não chegava a uma conclusão, empurrava os problemas para algum canto escuro da mente, onde talvez pudesse esquecê-los. Um pouco como o que fazia agora, encolhida no canto mais escuro do quarto, com esperanças de ser esquecida também.

Ela suspirou baixo, com cuidado para não acordá-lo. Se odiava por deixá-lo de lado desse jeito, como um problema qualquer, e nem mesmo deixá-lo perceber isso. Com cuidado e silêncio redobrados, levantou-se da poltrona. O sol estava mais alto agora.

Sentindo pela primeira vez que estar sozinha a machucaria menos do que estar com Victor, Nora saiu. Sem saber quando voltaria, ou mesmo se voltaria. Só sabia que se sentia menos sufocada nesse momento do que no último mês. A solidão a dois estava matando-a, pouco a pouco.

domingo, janeiro 26, 2014

Canção do Mar


Wish my mother could hear it
The sea is my song
For a moment, just a moment
I belong



Como Ismália que um dia quis a lua
Ariana queria o mar
Não sabia como nem porquê
Apenas sabia
Que aquele era seu lar
Para o mundo da qual vinha
Não pretendia revir
Apenas fechou os olhos
E até no fundo de sua alma
A água pode sentir
O ar que lhe faltava
Jamais voltaria
E enquanto a distância aumentava
A respiração diminuía
A duvida a cutucava
Bem no fundo da mente
Parecia tão errado
O sol a incomodava
Era tão quente!
O azul do oceano
Agora era negrume
A canção aumentava o volume
E seus ouvidos aumentavam a pressão
Se o sol lhe feria
E o mar a matava
Onde pertencia, então?

domingo, janeiro 05, 2014

We are young

Give me a second I
I need to get my story straight
My friends are in the bathroom
Getting higher than the empire state




A música ecoava a todo volume na casa lotada. A regra dos anfitriões era clara: não vão para o segundo andar. Mas é claro que não se pode controlar uma casa cheia de adolescentes e sem a supervisão de um adulto.

De todas as festas que já haviam sido dadas naquela casa, aquela estava longe de ser a pior, mas isso não é o mesmo que ser considerada uma festa devidamente controlada, calma e puritana. Acredito, se permitem minha humilde opinião, que qualquer pessoa com o mínimo de senso de limite teria se horrorizado diante de toda a cena. É sempre surpreendente o que adolescentes são capazes de fazer quando em estado de êxtase, e a felicidade era presente em todos os cômodos do sobrado. Ou quase todos.

Ela estava trancada no único quarto não ocupado de toda a casa, grande, decorado com cores claras e uma cama de casal. Provavelmente era o quarto dos pais dos dois jovens que davam a festa naquele exato momento. Ela não fazia ideia de como ambos explicariam o estrago que provavelmente sobraria depois, mas eles encontrariam algo. Pessoas de mente forte são boas fazendo isso, livrando-se bem de situações das quais outras pessoas sairiam arrependidas e envergonhadas.

Ultimamente, Juliet Reed andava pensando bastante nas outras pessoas. O suficiente para que tentasse, uma última vez, fazer amigos, mas sempre fora uma negação para isso. Durante toda a vida, ela nunca conseguiu entender a mentalidade de pessoas da sua idade. Tinha alma de velho, era o que diziam, mas dessa vez havia conseguido manter algumas pessoas próximas por um tempo consideravelmente longo. É óbvio que isso não é o mesmo que se sentir inclusa. Não importa o quanto tentasse, jamais conseguiria se enturmar, fosse entre os jovens ou entre os adultos.

Sabia que não devia ter ido. Agora estava sozinha, mais uma vez. Seus “amigos” deviam estar em algum outro canto do duplex, bebendo, fumando ou fazendo qualquer outra coisa da qual ela nunca se orgulharia de dizer ter participado. Porque, afinal, ela nunca participara. Esteve sozinha naquele quarto por tempo suficiente para revirar todo o cômodo. Era uma suíte bonita, com uma boa visão do jardim. Aquele lugar não era para ela. Talvez só devesse ir embora. Era algo que ela sempre pensara, desde quando podia se lembrar. Afinal, viver era para os felizes, não era? Ela nem mesmo sabia o que era felicidade! Talvez estivesse entre os cigarros fumados pelos presentes na festa, talvez estivesse no fundo das garrafas de bebida. Talvez não estivesse em lugar algum. Talvez estivesse no ar e só pudesse ser sentida pelos que sabiam apreciar os pequenos detalhes, mas ela se sentia tão sufocada…

Abriu a janela, mas não ajudou. O som ecoava longe, agora. Algo sobre ser jovem. Irônico, se fosse considerado quem ela era. Sentou-se no parapeito, e isso tampouco a ajudou a respirar melhor. Mas ela não se importou, pois nunca mais lhe diriam que ela não pertencia àquele lugar, e nunca mais ela se sentiria deslocada. Juliet podia ter a alma de uma pessoa idosa, mas sua aparência era de alguém jovem. E se permanecesse assim, talvez fosse aceita, ou menos estaria presente na memória das pessoas. Seria jovem para sempre. Ela pulou.




So if by the time the bar closes
And you feel like falling down
I'll carry you home tonight

quinta-feira, janeiro 02, 2014

This is Home


A porta do carro foi batida com força, logo após a adolescente sair, pisando duro e exalando raiva. O pai saiu do lado do motorista logo após, com uma mistura de ira e decepção. Nenhum deles me viu. Nenhum deles me sentiu. Não até agora.

Ele gritou mais alguma coisa para ela. Acho que vieram todo o caminho para casa aos berros. A essa altura, eu podia ver o traço brilhante que as lágrimas deixaram no rosto dela. Nenhum dos dois lembrou-se de pegar a mala da garota, jogada de qualquer jeito no banco traseiro. E nem eu lembrei, na verdade. Estava muito ocupado tentando identificar a causa das lágrimas. Raiva? Frustração? Ou a clássica tristeza? Ou, vai ver, eu sou o causador.

Oh, perdoe minha falta de educação, não me apresentei! Eu sou o Amor. Imagino que, como várias outras pessoas, você imaginava que uma figura feminina representasse meu sentimento. E é, às vezes. Você sabe, sentimentos podem muito bem assumir a forma que bem desejam, mas se assumíssemos nossas verdadeiras formas, com certeza não poderíamos ser discretos como devemos, em certos casos, e sob forma humana, seríamos tão velhos quanto possível. E que credibilidade com as pessoas teríamos, assim? As pessoas tem o péssimo hábito de não valorizar o que é velho, que tem histórias para contar.

Nesse momento, não passo de um adolescente, assim como ela. Nem mesmo sei o seu nome. Tenho ordens de não me envolver demais nas histórias que crio, mas é impossível, às vezes. Ainda lembro-me bem do desastre em que terminou Romeu e Julieta, ou mesmo Cyrano e Roxane. Acho que essa se chama Sofia. Ainda com o pai gritando coisas horríveis que eu não me importava em entender, ela olhou para o outro lado da rua. Bem para onde eu estava. Certamente não me reconheceu, e talvez tenha pensado que sou apenas um parente ou amigo de seu vizinho. Ela não me reconheceu, mas eu entendi, finalmente. Acho que as lágrimas eram de tristeza, afinal.

Ela entrou em casa. Casa. Palavra estranha diante toda essa situação. Veja bem, eu sei que todos me veem como O Mais Bonito dos Sentimentos, ou ainda O Sentimento que Move o Mundo. Mas as coisas não funcionam assim. É claro que também não sou perigoso, e tampouco obrigo as pessoas a fazerem coisas que quero que façam, mas posso influenciá-las. E essa menina, Sofia, foi influenciada por mim. Eu assumo a culpa. Mas, em minha defesa, a ideia parecia bastante aceitável na mente sonhadora de menina de 16 anos dela. Eu a ceguei, mesmo sem querer. Juntara a mesada durante meses. Arrumara algumas poucas roupas dentro de uma mala pequena, e estava pronta para assumir as responsabilidades como adulta e viveria com o namorado.

Mesmo para mim soa um plano burro e precipitado. Desculpem a grosseria, mas é como vejo. E é claro que deu errado. Por motivos como esses, por pessoas que confiam tão cegamente em mim que perdem a razão, é que perco também minha credibilidade. Não sou um sentimento vão, e grande parte das vezes sou racional também, ao contrário do que sei que imaginam por aí.

Ao menos tudo acabou bem, mesmo que a fugitiva não seja capaz de entender. Ainda é jovem demais para entender minhas motivações, e onde me encontrar. Ela acha que estou apenas onde seu amado está, assim como muitas menininhas apaixonadas por aí. É uma pena que não posso me comunicar diretamente com elas e lhes contar que não é assim que funciona. Eu estou em todo lugar, assim como o ar que ela respira, pois sou como a terra e o céu.

Ela vai entender um dia, eu sei disso. Enquanto não entende, acho que posso contar com a sensatez de seus pais para mantê-la em casa, segura e a salvo. E, no final das contas, ela conseguiu o que queria também. Queria estar onde o amor está, e embora ela esteja longe de onde sua paixão está, eu estou aqui. Quando a raiva passar, talvez ela perceba isso por si mesma, e se sinta em casa novamente.