segunda-feira, dezembro 09, 2013

Sobre nomes e hábitos

O sininho tocou quando a porta foi aberta, e o vento frio de inverno cortou todos que estavam dentro da pequena biblioteca. Já estava demorando.

— Sabia que te encontraria aqui.
— Alguns hábitos nunca mudam.

Kallisto já estava começando a estranhar a demora dele em aparecer. Era quase tão pontual quanto ela. Ainda assim, não levantou o olhar do livro aberto em seu colo quando respondeu.

— Como consegue observar as pessoas ao mesmo tempo em que lê?

Ela finalmente olhou para ele.

— Vejo que ainda não perdeu a mania de fazer perguntas.
— Alguns hábitos nunca mudam.

Permaneceram algum tempo em silêncio. Ela já havia parado de ler, mas mantinha o olhar baixo. Ele esperava pacientemente sua resposta.

— Eu não observo ao mesmo tempo em que leio, mas para mim ambos não fazem muita diferença.

Dessa vez, ele quem ficou quieto, absorvendo o que ouviu. Não tinha entendido tudo, mas já começava a compreender Kallisto, e sabia que quanto menos perguntasse, mais respostas teria.

— Se não ler com atenção, não se entende um livro. — ela continuou. — E se não olhar bem, não se entende as pessoas. A diferença é que um livro é sempre o mesmo, enquanto as pessoas sempre mudam.
— Soa mais interessante. — ele comentou, olhando para o nada. Ela apenas concordou com um aceno de cabeça.

Um minuto se passou. Depois dois, e três.

— Acho as pessoas bastante engraçadas. — Kallisto falou, quase que para si mesma.
— Por que?
— Todos dizem que sou muito sozinha, mas no fundo todos são mais isolados do que eu. Tão fechados em seu próprio mundo que não veem quem quer seu bem ou seu mal.

Mais uma pausa. Era quase como se o tempo não passasse para eles.

— Hoje mais cedo duas meninas saíram daqui, carregadas de livros de romance. Uma chorava. A outra, que a consolava, parecia sua amiga, mas meio deslocada. Pago quanto você quiser que o namorado da primeira menina a traiu com a garota que a consolava, sem ela saber.
— Como você sabe?
— Não sei. Não com certeza. Só vou percebendo os gestos e os olhares, as histórias crio eu mesma. Acho que para isso me servem os livros.
— Não acredite tanto nas aparências. Elas funcionam mais como máscaras do que como espelhos.
— O que quer dizer? — a pergunta foi seca e sem emoção, mas ele preferia ouvi-la como com a curiosidade de uma criança.
— A história de que não devemos julgar um livro pela capa é verdadeira. Nunca achei que você pudesse falar tanto quanto fala em nossas conversas.
— Porque normalmente eu não falaria.

Ele riu suavemente. Ela não precisou fazer a pergunta em voz alta para que ele entendesse que estava sendo questionado e explicasse.

— É engraçado. Um de seus hábitos mudou.

Ela não riu. Muito pelo contrário, apenas ficou mais séria, mas ele não se importou; ela só não queria admitir que ele estava certo.

— Ora vamos, não se irrite, não é algo ruim! — ele parou para pensar — Pelo menos eu espero que não. Tenho mudado alguns hábitos também...
— Estou vendo. Não faz mais perguntas com frequência.

Por um momento, ele achou que ela pudesse ter ficado com raiva da pequena brincadeira que havia feito e fosse voltar a trancar-se dentro de si mesma, como em uma caixa de vidro, mas o sarcasmo presente no tom de voz quando ela voltou a falar o fez relaxar. Por maior que fosse o escárnio presente na voz dela, enquanto ela falasse, ele estaria tranquilo. Sabia que devia se preocupar apenas caso ela se calasse.

— Um pouco, sim... mas acho que isso talvez possa ser a convivência contigo. Minha mudança de hábito foi te conhecer.
— Eu não acho que conhecer uma pessoa nova seja uma mudança de hábito.
— Não. Mas mudar meus hábitos me permitiu conhecer alguém novo. Sabe, eu nunca havia entrado aqui antes de te conhecer. — ele confidenciou como quem conta um segredo.
— E resolveu senta-se e conversar com uma completa estranha. Você é insano.

Ele fingiu-se ultrajado com a observação. Estava se divertindo com a situação toda, mesmo que Kallisto mantivesse a expressão séria.

— Eu disse que nunca tinha entrado aqui antes, não que desconhecia o lugar. Passei em frente algumas vezes, achei curioso que você viesse todos os dias.
— Isso se chama perseguição, não curiosidade.

Ele riu abertamente.

— Isso se chama identificação. Você é tão normal quanto eu. Um pouco mais fechada, talvez, mas igual.



Ela manteve-se quieta, pensando no que ouviu. Ele esperou alguns minutos, mas percebeu que ela não diria mais nada. Levantou-se e, ao ajeitar o sobretudo cinza-chumbo, disse apenas mais uma palavra.

— Gregory.

Ela olhou-o, intrigada.

— Meu nome é Gregory. E eu não acho que um perseguidor diria como se chama para sua vítima.

Ela aceitou o desafio subentendido com um sorriso discreto.

— Kallisto. Mas lembre-se, vítimas são indefesas. Pessoas indefesas não dizem seus nomes assim tão fácil.

Olharam-se por mais algum tempo, mas nada foi dito. Por fim, ele riu suavemente mais uma vez, dando meia-volta e saindo pela mesma porta pela qual entrara. Kallisto, por outro lado, não voltou a ler o livro, mas saiu pouco tempo depois. Costumava ficar até mais tarde, mas não lhe faria mal quebrar um hábito uma vez ou outra.

Um comentário:

  1. Estava tentando formular um comentário e então pensei, se uma pessoa está acostumada a quebrar seus hábitos, isso se torna um habito, de forma que não quebrar seus hábitos seria uma quebra de habito? qq

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