domingo, dezembro 29, 2013

God save the Queen


A escova desliza pela cascata preta que são seus cabelos. O batom vermelho retoca uma imperfeição inexistente nos lábios fartos. O porte de princesa não lhe diz respeito, mas poderia se passar por uma rainha facilmente. O luxo é parte de você. E o luxo jamais se mistura com o lixo.


E enquanto eu te escrevo essas palavras, não me preocupo com o quão indelicado eu sou. Não me importo com possíveis erros de gramática ou palavras com duplo sentido. Nada me preocupa pois sei que o que mais te enoja não é o que lhe digo indiretamente, mas o simples fato de que, apesar de viver em seu próprio mundo onde pessoas são súditos e sua pessoa é a maior autoridade, nada deveria manchar sua imaculada perfeição. E é claro que tocar em um papel de carta antes tocado por um simples plebeu te torna tão suja quanto eu sou.

Talvez eu esteja errado. Talvez você não leia com uma expressão de nojo e o estômago revirado. Talvez nem mesmo demonstre algum abalo em seu coração frio como gelo. Talvez nem mesmo leia até o fim. Isso me dá a liberdade de escrever como bem entender, não é? É o que eu farei, de qualquer jeito.

Diga-me, qual o propósito de agir assim? Sempre vi a pobreza de espírito como o pior dos pecados, mas nunca havia percebido como o excesso também é nocivo à saúde espiritual. Nunca havia percebido, mas também nunca havia notado teu jeito de imperatriz de Lugar Nenhum. Diga-me, imperatriz, qual seu propósito? Faz tudo como se alguém te contemplasse, pequena Narcisa que jamais amou. Sei que jamais amou, pois se amasse, não faria o que faz. Não ama nem a si mesma. Ora essa, se ao menos conseguisse admirar seu próprio reflexo sem perceber algum defeito a ser consertado, poderia perceber a beleza da imperfeição.

Apenas pare. Pare por alguns poucos minutos, e olhe ao redor. Então, diga-me mais uma vez, Vossa Majestade, como andam seus propósitos? Vale a pena satisfazer seus caprichos dignos de uma criança que cresceu cedo demais? Olhe ao redor e repare não só no que você perde de nós, súditos de uma rainha jamais coroada, mas também no que você perde de si mesma. Vossa Majestade possui alguma qualidade? Se possui, por favor, deixe-me vê-la! Pois assim, a olho nu, não posso enxergar nenhuma. Apenas o excesso de luxúria, que lhe cai melhor como pecado.

Não acredito que tudo tenha sido lido até aqui. Se foi, agradeço o tempo que me foi dedicado, e peço desculpas pelo incômodo provocado. Afinal de contas, sei que plebe e realeza não se misturam. Talvez algum dia as coisas mudem, mas não começará por mim. Aproveite a chance enquanto pode, e aproveite seus privilégios enquanto lhe são oferecidos, ainda que pela sua própria mente sedenta de poder e atenção.

Deus salve a rainha.

segunda-feira, dezembro 23, 2013

A Origem da Sereia



(com participação de M. Deméter.)


O barulho na superfície continuava com o mesmo nível de irritação que sempre ocorria naquela época. Um zunzunzum sem fim que apenas humanos eram capazes de fazer e que causava uma desordem mesmo lá no início das profundezas do mar.

Jullie sabia muito bem que não deveria se aproximar daquela raça barulhenta e porcalhona, mas o barulho era tanto que a vontade de deixar-se roçar nas pernas de um ou nos pés de outro era praticamente incontrolável. Ora, ela tinha o direito de ferir ao menos aqueles que ousavam ir fundo demais e importunar seu habitat natural. Aquela era sua casa, não deles.

Ela entendia sem problemas que eles usassem o mar como fonte de diversão durante os dias de férias. Mas ora essa, era noite de Natal! Para os humanos, isso queria dizer ficar em suas casas, com suas famílias, não? Pois então, que fizessem isso e deixassem tanto ela como os outros seres marinhos em paz!



Stella olhava toda a cena com reprovação. Não concordava com a ação dos humanos, mas não concordava com Jullie também. Os humanos eram perigosos. O melhor a fazer seria deixá-los de lado e ir mais fundo no oceano, onde eles não seriam capazes de chegar, e ficar lá até que eles fossem embora.

E era exatamente isso que ela tentava fazer, afinal, era uma estrela-do-mar e o que estrelas-do-mar podem contra os destruidores humanos da natureza? Ela poderia ser pisoteada, chutada, arremessada, ou ainda pior, poderia ficar presa em alguma daquelas coisas brancas que mais pareciam redes sem furos para peixes.

Ainda assim, como poderia ir para a segurança do calmo fundo do mar e deixar sua amiga lá? Jullie era uma água-viva e conseguia se defender, mas suas defesas também poderiam ser a causa de sua morte.

Ela ponderou durante um bom tempo. No geral, mantinha-se longe de humanos e o mais longe possível da superfície. Se permanecesse muito tempo longe da água, morreria, e sabia disso. Mas Jullie não parecia com tanto medo, ou ao menos pensava que o risco valia à pena.

Por fim, decidiu se aproximar, apenas o suficiente. Convenceria Jullie a voltar consigo para o fundo do mar, onde esperariam até que tudo se acalmasse. Mas nada se acalmou, e ela nem mesmo teve a chance de chegar perto.

O zunzunzum de antes foi incrementado pelo barulho da queda, e a primeira coisa que Stella conseguiu visualizar foi uma massa loira que acreditava se chamar cabelo. Depois vieram os braços e pernas cumpridos se debatendo de um lado para o outro e causando reviravolta no mar, impedindo o avanço da estrela.

A água-viva desapareceu de sua visão por alguns segundos, enquanto seus braços mantinham seu equilíbrio no agitar do mar, impedindo-a de se afastar muito ou virar de pernas pro ar.



Jullie sentiu as ondas antes de ver a menina loira, mas isso não impediu que alguns dedos tocassem sua membrana por um instante, fazendo a humana se debater ainda mais. Por ela, a menina continuaria onde estava agora: abaixo da superfície, tentando desesperadamente subir e respirar.
Humanos não costumavam se importar com as criaturas do mar que eles, por vezes, matavam ou tiravam de seu lar para criar em ambientes artificiais. Por que, então, criaturas marinhas deveriam se importar com humanos?



Stella, mesmo que quisesse, não poderia levá-la para a superfície. Não tinha muito que pudesse fazer além de ficar ali e assisti-la se afogar. Entretanto, seu desejo era exatamente o contrário ao da água-viva, queria impedir que a humana se perdesse eternamente entre as correntes marítimas.

Talvez fosse exatamente por isso que ela era uma estrela inofensiva enquanto sua amiga era uma ardente água-viva, Jullie tinha o instinto predatório que Stella nunca teria, instinto esse que várias vezes já salvara sua vida, mas que várias outras a metera em grandes confusões.
Independente do que sua amiga pensasse, ela não deixaria que aquela menina morresse. Afinal, a garota não tinha culpa de pertencer à raça dos barulhentos quebradores de conchas.

Resolveu, então, avisar a Jullie o que resolvera fazer. Avisaria a eles. Era uma medida extrema, mas com ou sem o apoio da amiga sabia que era a única solução, não ficaria parada observando uma humana sofrer daquele jeito. Além do mais, aquilo já havia sido feito antes, qual o problema em fazer mais uma vez?

Concentrou-se em tentar se comunicar com Jullie. Não poderia avisar com palavras como os humanos faziam, é claro, era só uma estrela-do-mar, mas poderia avisá-la através de suas emoções, com uma espécie de imagem mental.

A resposta veio inicialmente em forma de desespero e inquietação, como esperado. A água-viva pouco se importava com vida e morte dos humanos. Mas mesmo ela aos poucos, com os argumentos apresentados por Stella, foi transmitindo um sentimento de compreensão e aceitação, afinal, do pouco que as duas ouviram falar deles, sabiam que salvavam apenas os merecedores de tal dádiva.



A garota loira aos poucos ia afundando, algumas bolhas cada vez mais raras escapando por seus lábios. Após decidirem contatá-los, estrela e água-viva precisavam agir rapidamente.

Jullie se prontificou a trazê-los com toda a força de seus pensamentos e distanciou-se um pouco da menina balançado seu corpo o mais rápido que podia. Não era possível que ouvissem com toda aquela agitação que a humana proporcionava.

Eles não demoraram muito. Se a garota podia ver alguma coisa debaixo d'água, então certamente achava que já estava perdendo o juízo. Tinham idades aparentemente diferentes, mas todos possuíam uma beleza incomparável. Desde as feições humanas extremamente belas até a ponta de suas barbatanas.

O grupo era composto por sereias e tritões, cada qual com escamas de cores diferentes, bem como seus cabelos e olhos. Eles avaliaram a situação por um momento, que parecia breve e ao mesmo tempo eterno. 

O tempo da humana estava acabando. Por fim, um sentimento de compaixão e bondade espalhou-se, e foi como se isso fosse o suficiente para acalmar tudo ao redor de todos eles.

Mesmo que a humana tivesse visto alguma coisa, já não importava mais. Logo ela deixaria sua humanidade para trás.

As sereias foram as primeiras no ritual, colocaram-se ao redor da garota quase inconsciente e, antes de darem as mãos, começaram a cantar. Os tritões seguiram os movimentos fazendo um circulo externo e mantendo os lábios fechados.

Stella e Jullie nunca tinham visto o processo antes e o canto as deixou maravilhadas. Não era como o som dos humanos. As vozes se propagavam na água com uma leveza aparentemente impossível e, apesar de não soarem completamente claras, a intenção era óbvia e palavras não eram necessárias.

Os tritões, por sua vez, mantinham uma base acústica ainda mais abafada, o timbre grosso soando por trás dos lábios fechados, apenas pelo tremor de suas cordas vocais.

Por fim, um dos tritões se aproximou, ficando no meio do círculo, junto com a garota loira. Não emitia qualquer tipo de som, mas seu olhar era concentrado. Ele fechou os olhos, e levantou a mão em direção a testa da menina. Tocou-a suavemente e da ponta de seus dedos saiu uma forte luz branca, que os envolveu.

Nem Stella nem Jullie sabiam se o brilho poderia ser visto pelos humanos da superfície, mas ambas duvidavam que eles reparassem, se fosse visível, ou que conseguissem enxergar alguma coisa, uma vez que a luz era muito forte; elas mesmas mal conseguiam ver o que se passava lá.

Aos poucos, o som do canto das sereias foi diminuindo, assim como o brilho. Quando tudo acabou, o oceano parecia estranhamente escuro. E, no centro da roda, não estava mais o tritão e a menina quase morta. Mas sim um tritão e uma sereia.

A ex-humana abriu os olhos voltando à consciência, soltou algumas bolhas de ar pela boca no que pareceu uma tosse ou quem sabe um sopro de vida preso à garganta.

Os humanos continuavam com o zunzunzum irritante de sempre, mas nem todos eram os porcalhões barulhentos quebradores de conchas. Talvez, ao contrário do que Jullie e Stella pensavam, os humanos não fossem vilões por completos, alguns ainda valiam à pena salvar, e certamente seriam salvos.

Como aquela menina. Afinal, se ela fosse tudo aquilo, ela teria deixado de existir durante a transformação, pois ao contrário do que diz a lenda, sereias nunca são cruéis.







Texto escrito com a linda da M. Deméter, dona do (my) Imaginary World, quase uma irmã e que juntou nossos pseudônimos sem problemas! <3

domingo, dezembro 22, 2013

Imaginary enemy


Então mandei alguns homens para a luta
E um voltou no meio da noite
Disse: "você viu meu inimigo?"
"Ele se parecia comigo"


O choro de criança. A pele avermelhada. Mais um tapa. O medo nos olhos. O baque da realidade que até então lhe era desconhecida, ou assim ele queria que fosse. A pergunta se repetia em sua mente: “O que foi que eu fiz?”. A culpa que lhe tomava. O medo agora fora substituído pelo impulso e pela raiva, e o amor jurado há tempos já fora esquecido. O fruto desse amor com o rosto manchado depois das lágrimas, a confusão tomando sua mente. Teclas pressionadas no telefone, e um pedido de desculpas abafado por juras de vingança. Como aquilo tudo começou? Ele não tinha ideia. Ninguém tinha. Apenas teve um início, e estava prestes a ter um fim. A luta fora perdida, e perdido ele também ficaria, pois bem no fundo ele sabia qual era seu centro, quem lhe fazia feliz. Uma pena que a felicidade não fora o suficiente para que se mantivesse estável, e a instabilidade o levou para a insanidade. A raiva voltou a lhe tomar a alma, e ele teria quebrado qualquer coisa, se isso fizesse com que fosse possível voltar no tempo. Uma janela, um prato, um copo, um espelho. Não havia nada que pudesse quebrar, e desconfiava que se tivesse um espelho por perto, não ousaria se aproximar dele. Não seria capaz de ver sua própria imagem, porque não sabia o que veria. O reflexo de quem era, do animal que havia se transformado ou a imagem de quem realmente era, do homem feliz de antigamente, não sabia quem lhe olharia de volta. Com as últimas forças que possuía, se forçou a recuar, e agora era ele quem chorava. Tudo havia acabado, enfim. Não sabia mais quem era. Sabia apenas que a guerra teve seu final. Jamais seria chamado de pai de novo, porque jamais mereceu. Jamais precisaria usar a aliança mais uma vez, porque era tudo sobre respeito, e respeito ele jamais teve. E jamais seria capaz de olhar seu reflexo de novo, pois para onde iria todos eram como ele; todos haviam sido presos em jaulas por serem monstros. Mas ele conseguiu constatar, antes de se transformar completamente em um animal, que todos lá eram como ele: soldados feridos em batalhas, soldados mortos em campo, soldados que atiraram em si mesmos. Inimigos pessoais uns dos outros.

sexta-feira, dezembro 13, 2013

Ao som de Ícaro


Não nascera para aquilo
Viver presa era seu terror
Estava cada vez mais cansada
E acostumara-se com o rancor

A ideia surgiu
Do desespero que sentia
E ao som de Ícaro,
Achou que nunca mais sofreria

Com a música em seus ouvidos,
Ela decidiu voar
Dentro de pouco tempo
Estaria sobrevoando o mar

Longe demais de Apolo,
Percebeu que a música era aviso
Com o chão se aproximando,
Apagou-se o sorriso

Muitos a  avisaram
Ela apenas riu
Agora era tarde
E o castigo a atingiu

Aquilo que lhe agradava
Agora era importuno
Não poderia mais se arrepender:
Foi abraçada por Netuno.

quarta-feira, dezembro 11, 2013

Relicário da alma



Para aquele que sempre fará parte de mim


Com uma pequena pétala de rosa branca, desejo-te toda a paz do mundo. Com um pingente de floco de neve, espero que toda a tristeza vá embora. Com uma fitinha anil, espero que jamais me esqueça. Com um pedacinho de corrente, espero que saiba que “nós” vai durar muito tempo. Com a luz da Lua, preencho o resto do espaço, com a clareza que gostaria de ter na mente e no coração. Com toda a minha esperança, espero que tudo dê certo. E com uma respiração funda, espero não me arrepender de ter lhe dado metade de mim, separada em pedacinhos pequenos. Sei que em breve me arrependerei, mas talvez tudo acabe bem; talvez você saiba quem sou, e então terei mais vergonha do que nunca de olhar em seu rosto. Mas talvez você apenas guarde como um singelo presente anônimo. Quem sabe você não seja um pouco mais romântico do que eu pensei? Talvez (mas apenas um talvez, que soa mais como esperança, no fundo da minha mente) este pequeno relicário te mostre mais sentimentos do que eu jamais seria capaz de dizer com palavras. Talvez te mostre que sou uma pessoa real. E quem sabe você não me presenteie com um relicário, também, ainda que você já seja parte de mim. Mais do que parece. Mais do que eu demonstro. Mais do que nunca.



Daquela que sempre terá um pouco de ti.

segunda-feira, dezembro 09, 2013

Sobre nomes e hábitos

O sininho tocou quando a porta foi aberta, e o vento frio de inverno cortou todos que estavam dentro da pequena biblioteca. Já estava demorando.

— Sabia que te encontraria aqui.
— Alguns hábitos nunca mudam.

Kallisto já estava começando a estranhar a demora dele em aparecer. Era quase tão pontual quanto ela. Ainda assim, não levantou o olhar do livro aberto em seu colo quando respondeu.

— Como consegue observar as pessoas ao mesmo tempo em que lê?

Ela finalmente olhou para ele.

— Vejo que ainda não perdeu a mania de fazer perguntas.
— Alguns hábitos nunca mudam.

Permaneceram algum tempo em silêncio. Ela já havia parado de ler, mas mantinha o olhar baixo. Ele esperava pacientemente sua resposta.

— Eu não observo ao mesmo tempo em que leio, mas para mim ambos não fazem muita diferença.

Dessa vez, ele quem ficou quieto, absorvendo o que ouviu. Não tinha entendido tudo, mas já começava a compreender Kallisto, e sabia que quanto menos perguntasse, mais respostas teria.

— Se não ler com atenção, não se entende um livro. — ela continuou. — E se não olhar bem, não se entende as pessoas. A diferença é que um livro é sempre o mesmo, enquanto as pessoas sempre mudam.
— Soa mais interessante. — ele comentou, olhando para o nada. Ela apenas concordou com um aceno de cabeça.

Um minuto se passou. Depois dois, e três.

— Acho as pessoas bastante engraçadas. — Kallisto falou, quase que para si mesma.
— Por que?
— Todos dizem que sou muito sozinha, mas no fundo todos são mais isolados do que eu. Tão fechados em seu próprio mundo que não veem quem quer seu bem ou seu mal.

Mais uma pausa. Era quase como se o tempo não passasse para eles.

— Hoje mais cedo duas meninas saíram daqui, carregadas de livros de romance. Uma chorava. A outra, que a consolava, parecia sua amiga, mas meio deslocada. Pago quanto você quiser que o namorado da primeira menina a traiu com a garota que a consolava, sem ela saber.
— Como você sabe?
— Não sei. Não com certeza. Só vou percebendo os gestos e os olhares, as histórias crio eu mesma. Acho que para isso me servem os livros.
— Não acredite tanto nas aparências. Elas funcionam mais como máscaras do que como espelhos.
— O que quer dizer? — a pergunta foi seca e sem emoção, mas ele preferia ouvi-la como com a curiosidade de uma criança.
— A história de que não devemos julgar um livro pela capa é verdadeira. Nunca achei que você pudesse falar tanto quanto fala em nossas conversas.
— Porque normalmente eu não falaria.

Ele riu suavemente. Ela não precisou fazer a pergunta em voz alta para que ele entendesse que estava sendo questionado e explicasse.

— É engraçado. Um de seus hábitos mudou.

Ela não riu. Muito pelo contrário, apenas ficou mais séria, mas ele não se importou; ela só não queria admitir que ele estava certo.

— Ora vamos, não se irrite, não é algo ruim! — ele parou para pensar — Pelo menos eu espero que não. Tenho mudado alguns hábitos também...
— Estou vendo. Não faz mais perguntas com frequência.

Por um momento, ele achou que ela pudesse ter ficado com raiva da pequena brincadeira que havia feito e fosse voltar a trancar-se dentro de si mesma, como em uma caixa de vidro, mas o sarcasmo presente no tom de voz quando ela voltou a falar o fez relaxar. Por maior que fosse o escárnio presente na voz dela, enquanto ela falasse, ele estaria tranquilo. Sabia que devia se preocupar apenas caso ela se calasse.

— Um pouco, sim... mas acho que isso talvez possa ser a convivência contigo. Minha mudança de hábito foi te conhecer.
— Eu não acho que conhecer uma pessoa nova seja uma mudança de hábito.
— Não. Mas mudar meus hábitos me permitiu conhecer alguém novo. Sabe, eu nunca havia entrado aqui antes de te conhecer. — ele confidenciou como quem conta um segredo.
— E resolveu senta-se e conversar com uma completa estranha. Você é insano.

Ele fingiu-se ultrajado com a observação. Estava se divertindo com a situação toda, mesmo que Kallisto mantivesse a expressão séria.

— Eu disse que nunca tinha entrado aqui antes, não que desconhecia o lugar. Passei em frente algumas vezes, achei curioso que você viesse todos os dias.
— Isso se chama perseguição, não curiosidade.

Ele riu abertamente.

— Isso se chama identificação. Você é tão normal quanto eu. Um pouco mais fechada, talvez, mas igual.



Ela manteve-se quieta, pensando no que ouviu. Ele esperou alguns minutos, mas percebeu que ela não diria mais nada. Levantou-se e, ao ajeitar o sobretudo cinza-chumbo, disse apenas mais uma palavra.

— Gregory.

Ela olhou-o, intrigada.

— Meu nome é Gregory. E eu não acho que um perseguidor diria como se chama para sua vítima.

Ela aceitou o desafio subentendido com um sorriso discreto.

— Kallisto. Mas lembre-se, vítimas são indefesas. Pessoas indefesas não dizem seus nomes assim tão fácil.

Olharam-se por mais algum tempo, mas nada foi dito. Por fim, ele riu suavemente mais uma vez, dando meia-volta e saindo pela mesma porta pela qual entrara. Kallisto, por outro lado, não voltou a ler o livro, mas saiu pouco tempo depois. Costumava ficar até mais tarde, mas não lhe faria mal quebrar um hábito uma vez ou outra.